Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Mamy

Minha mãe encontrou umas fotos antigas da gente na praia. Eu uma criança alérgica, angustiada, sempre com enjoo. Ela, de asa delta, exibindo sem maiores questionamentos tudo o que tinha conseguido nas horas diárias na academia. Lembro que as conversas, em muitos verões que passamos agarradas, sempre se resumiam a coisas do tipo "mãe, se a gente comer essas comidas da praia, pode morrer?" e ela respondia algo como "morre quem passa vontade" e comprava sacos gigantes de camarões fritos e os detonava com luxúria, urgência e casca (foi internada uma vez, num pronto-socorro podre de Ubatuba). Mamy era uma força espetacular da natureza enquanto eu, aos nove anos, já era fóbica e estranha.

Um dia ela chegou em casa contando que, ao sair do trabalho, minissaia coladinha, saltos muito altos, decote nos seios esplendorosos, cabelão Farrah Fawcett, foi responsável por um acidente de carros na avenida Celso Garcia. Eles colidiram ao vê-la passar. Ela chegou narrando a cena, preocupada. Tá bom que ela tava preocupada! Adorou. Meu pai dizia "se você sair por essa porta, eu pulo pela janela". Ela saiu e ele não pulou, mas até hoje fica nervoso quando ela chega. Minha mãe tem 1,5 metro de altura (e agora, com quase 70 anos, deve estar ainda mais baixinha), mas nunca causou emoções pequenas por onde passou. Sempre foi um demônio da Tasmânia disfarçado de Brigitte Bardot.

Aos cinquenta e muitos, decidiu fazer um lifting facial e se internou numa clínica. Eu fui com ela, achando que era uma besteirinha de meia hora. Tipo tirar uma pinta. Ela então mandou a real: "Vão descolar a pele do meu rosto e costurar de novo". O médico explicou que a cirurgia duraria aproximadamente seis horas e que por algumas semanas eu precisaria ajudar, tipo dar sopa na boca. Mamy ficou parecendo uma sobrevivente de atropelamento de trem por longos meses. Quando fui buscá-la na clínica, a enfermeira teve que me segurar. Minha perna falseou. O que tinham feito com minha deusa? Até que um dia ela acordou maravilhosa, com quarenta anos de novo. Ameaçou processar o médico por ter lhe "deixado uma orelha estranha", mas era só mais do mesmo: tá sempre arrumando uma encrenca.

Ela vai ler esse texto e brigar comigo. Você me descreveu como fútil! Você não contou que eu trabalhava 500 horas por dia com os dois túneis do carpo operados pra te dar tudo o que você queria! Que abri mão de muitos relacionamentos porque filho é filho! Tá contado, mãe (sim, leitores, faço terapia há mais de quinze anos). Mas é que, apesar de tudo isso, o que eu lembro com mais carinho é da minha obsessão estética por você. Eu sentada no chão do banheiro te vendo tomar banho. Eu tentando beijar sua boca enquanto você dormia. Não sei como não sou lésbica. Aliás, acho que sou. Todo mundo é.

Talvez por causa da feminilidade extrema de mamãe, talvez por causa das meninas lindas e sexuais da escola, eu sempre achei que cabia a mim ser "a doidinha engraçada". Pelo menos era um lugar de destaque para um ser mais apagadinho. Recentemente, talvez porque tenho um namorado que me ama (e não mais um do tipo genérico "sou louco por você, mas"), talvez porque, a despeito da despedida do colágeno, a maturidade tenha um lugar de charme que era desconhecido por meu intenso desassossego, comecei a me achar bonita. Perdão por selfies sensuais (os que me seguem), mas tudo ainda é muito novo. Obrigada, mãe, finalmente fiquei parecida com você.

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