Desamparadas, famílias de mortos no Rio abandonam suas casas e empregos

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LUIZA FRANCO
DO RIO

No dia em que seu filho morreu baleado em uma operação policial no Complexo da Maré, Dilma Galdino, 39, montou uma barricada na av. Brasil e ateou fogo a ela.

Nos meses seguintes, participou de protestos contra violência policial e deu entrevistas em frente ao IML, onde passara mais de cinco horas esperando o corpo do filho, Davison Lucas, 14. Ela passou por um luto público, que já passou, e um outro privado, esse que não acaba.

Quando uma morte violenta irrompe numa família, muda tudo –cotidiano, personalidades, relações, situação financeira e até o lugar de moradia dessa família afetada.

Muita coisa é diferente hoje na casa da família Galdino. Antigamente, Dilma chegava do trabalho e encontrava a sala arrumada, os pratos lavados. Era obra de sua filha, Larissa, 13. Agora, a louça suja fica na pia, e Larissa passa a maior parte do tempo no quarto. Dilma se mudou e deixou o emprego de auxiliar administrativa num supermercado. Agora a família vive do salário do marido dela.

Crédito: Ricardo Borges/Folhapress Rio de Janeiro, Rj, BRASIL. 20/12/2017; Retrato de Dilma Galdino, 39, mãe de Lucas, 14, morto durante uma operação no Complexo da Maré, no Rio, em janeiro. ( Foto: Ricardo Borges/Folhapress)
Dilma Galdino, 39, mãe de Lucas, 14, morto durante uma operação no Complexo da Maré

"Nada vai trazer meu filho de volta, mas minha missão é achar um culpado", diz Dilma. O caso ocorreu um ano atrás e, segundo a polícia, segue em investigação.

A busca por um culpado também é a saga de Tatiana Lopes, 36, tia de Vanessa Vitória, 10, morta com um tiro na cabeça dentro de casa numa favela do Complexo do Lins, na zona norte do Rio.

Na tarde de 5 de julho, na porta do IML do Rio, Tatiana fez um desabafo. Um vídeo da cena viralizou, pois ela parecia falar por toda a cidade. "A gente não aguenta mais. Hoje foi minha sobrinha. Ontem foi a Maria Eduarda [da Conceição, 13, morta dentro de escola em Acari]. Amanhã vai ser quem? A gente está cansado. Quero ver dizer na minha cara que a gente pode contar com o poder público no Rio." Até novembro, 6.173 pessoas haviam sido mortas de forma violenta no Estado, mais ou menos 18 por dia.

Crédito: Guilherme Pinto / Agência O Globo EXT CI Rio de Janeiro ( RJ ) 05\07\2017 - Tatiana Cristina Lopes ( tia da vanessa ) vitima de bala perdida no Complexo do Lins - Foto guilherme Pinto / Extra / Agência O Globo DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM
Tatiana Cristina Lopes, tia de Vanessa, vítima de bala perdida no Complexo do Lins

No momento da morte de Vanessa Vitória acontecia uma operação policial. Segundo os parentes, os agentes invadiram a casa em busca de traficantes e atiraram, atingindo a menina. A investigação não conseguiu determinar de onde partiu o tiro.

Tatiana ainda é a voz pública sobre o caso de sua sobrinha, junto com a do pai, Leandro Matos. A mãe de Vanessa se mudou, por medo de ser morta também, e entrou em depressão. Tem sido atendida por um aluna psicóloga de Tatiana, que é professora de educação física em academias. "As pessoas não tocam no assunto, elas têm um bloqueio, acham que eu vou ficar chateada, mas não quero deixar passar. E quanto mais vivo ficar em mim, mais vou querer brigar para que algo seja feito", afirma a tia.

FUGA DE CASA

Sofia Lara Braga, 2, brincava no pátio de uma lanchonete em Irajá, na zona norte, quando um carro de polícia passou em perseguição a criminosos. Houve tiros. Uma bala atingiu a cabeça da menina, e ela morreu na hora.

Seus pais, que lanchavam quando ela foi atingida, nunca mais conseguiram voltar para a casa. Se mudaram para outra no mesmo bairro. O pai, Felipe Amaral, 35, também é policial militar, então lida com a possibilidade de que sua filha tenha sido morta por um colega de farda.

A resposta ainda não veio, pois a investigação segue em curso até hoje. "Prefiro acreditar que não foi um colega, mas isso me ronda. Mesmo assim, quero voltar para a força para ajudar a combater a violência", diz o soldado, que está de licença médica, sob atendimento psicológico.

Também na zona norte, à beira da avenida Brasil, Thamires Oliveira, 28, se espreme numa quitinete com os três filhos. Enquanto isso, na casa ao lado está o apartamento onde a família vivia, com quarto, sala, cozinha, banheiro e laje. Vazio, mas não para as crianças. "Eles não passam da escada, dizem que está cheio de memórias do pai, não querem lembrar, e eu não forço", diz ela.

Crédito: Ricardo Borges/Folhapress Rio de Janeiro, Rj, BRASIL. 11/12/2017; Retrato de Thamires Oliveira, 28 que teve o marido morto no começo do ano de 2017 na zona norte do Rio. Especial sobre o que acontece na vida das pessoas quando elas perdem parentes para a violência. ( Foto: Ricardo Borges/Folhapress)
Thamires Oliveira, 28, teve o marido morto no começo do ano de 2017 na zona norte do Rio

Segundo a família, Raphael Santos, 30, saiu para tirar uma fotocópia e não voltou mais. Apareceu morto com um tiro no pescoço, seu corpo boiando no rio Acari, janeiro passado, em circunstâncias até hoje não esclarecidas pela Polícia Civil. Naquele dia houve tiroteio entre policiais e criminosos na favela que fica em frente à sua casa.

"Da mesma forma como ele saiu de casa eu o encontrei no rio e eu mesmo tirei ele de lá, com documento e dinheiro no bolso. As pessoas sentem pena da família do policial quando ele morreu, mas e a nossa?", questiona o pai, Luiz Roberto Gomes, 60.

Crédito: Ricardo Borges/Folhapress Rio de Janeiro, Rj, BRASIL. 11/12/2017; Retrato de Luiz Roberto Gomes(60) que teve o filho morto no começo do ano de 2017 na zona norte do Rio.Especial sobre o que acontece na vida das pessoas quando elas perdem parentes para a violência. ( Foto: Ricardo Borges/Folhapress)
Luiz Roberto Gomes, 60, teve o filho morto no começo do ano de 2017 na zona norte do Rio

VÍTIMAS

A violência na cidade faz tanto vítimas diretas quanto indiretas. As consequências para parentes e amigos podem vir na forma de impacto sobre sua saúde física e mental, nas relações sociais, gerar problemas financeiros.

"É uma via-crúcis. Vivenciar uma experiência dessas, que tem grande potencial traumático, tem impacto muito relevante na saúde. O homicídio é estigmatizado. Existe a crença de que, se você morreu assassinado, é porque fez algo errado. Com isso, a morte não é valorizada. Por isso, as famílias acabam se isolando, fragilizando as relações sociais e familiares -o lar fica mais pesado", diz Daniella Harth, psicóloga da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e que estuda o tema.

Ela lembra o caso de Jozelita de Souza, mãe de Roberto, um dos cinco amigos assassinados por PMs na chacina de Costa Barros, em 2015. A cabeleireira morreu em razão de um quadro de depressão.

Tereza Gonçalves Farias, 44, morava havia mais de 20 anos numa parte do Complexo do Alemão conhecida como Inferno Verde. Apesar de o lugar fazer jus ao nome, devido aos frequentes tiroteios, ela gostava de viver ali. Era pobre, mas era barato.

Em julho deste ano, ela desceu o morro e foi morar num condomínio Minha Casa Minha Vida, onde divide o aluguel com uma amiga e vive pagando contas com atraso. Não está lá porque quer, mas porque teme retaliação por não ter se calado após a morte do seu filho, Felipe Farias, 16, baleado em correria após um protesto, em julho, pela morte de outro adolescente na favela, Paulo Henrique de Oliveira, 13.

Crédito: Ricardo Borges/Folhapress filho morto por PMs na zona norte do Rio.Especial sobre o que acontece na vida das pessoas quando elas perdem parentes para a violência. ( Foto: Ricardo Borges/Folhapress)
Tereza Gonçalves Farias, 44 teve o filho morto por PMs na zona norte do Rio

Tereza acusa PMs de o terem assassinado. Foi o que testemunhas disseram aos investigadores. Segundo ela, a orientação para deixar a favela veio de um inspetor da polícia.

No celular dela há fotos que registram policiais atirando no dia do protesto do beco onde o filho dela morreu, balas na parede, resgate do menino por moradores. "Tudo o que eu tenho no meu celular a polícia tem também, mas, até agora, ninguém fez nada. Vou no beco todos os dias para ver se as balas ainda estão lá. E estão. Só por que eu moro na favela o meu filho pode morrer e ninguém ser punido?"

O caso de Maria Eduarda, 13, morta com tiros pelas costas dentro de escola, em Acari, é um dos raros que tiveram uma investigação conclusiva. Dois PMs se tornaram réus. Naquele momento, eles trocavam tiros com criminosos e atiraram contra a escola.

Rosilene Ferreira, 53, sua mãe, conversou com a Folha por telefone, disse que falaria mais pessoalmente, mas depois desmarcou o encontro. Durante dias, mandou mensagens com vídeos e fotos da menina. Depois, não atendeu mais. Ela, que é acompanhante de idosos, não voltou a trabalhar.

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