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Fernando
Novais
Historiador
vê diferença entre estudar a visão do índio e reconstituir a história
com seu ponto de vista
(24/4/2000)
"Não
podemos nos transformar em índios", diz Fernando Novais
Nome:
Fernando Novais
Cargo:
professor aposentado
do Departamento de História da USP e professor do Instituto
de Economia da Unicamp
Especialidade:
Brasil colonial
Livros: "Portugal e Brasil na Crise do
Antigo Sistema Colonial (1777-1808)" (Hucitec), diretor
da série "História da Vida Privada no Brasil"
(Companhia das Letras), entre outros
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JOÃO
BATISTA NATALI
da Reportagem Local
Autor de um dos principais clássicos da historiografia colonial:
"Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1801)",
o historiador Fernando Novais considera que em 1500 não houve Descobrimento
do Brasil, e sim o surgimento das bases da colonização portuguesa.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Novais concedeu
à Folha, em sua casa.
Folha - O Brasil está comemorando efetivamente 500 anos?
Fernando Novais - Não há nenhuma nação que não tenha comemorações.
Toda nação necessita de memória e de passado para se legitimar.
As comemorações são lembradas de duas formas: uma pelo governo,
por discursos, por inaugurações, e outra pelo mundo acadêmico, em
simpósios e congressos. No Brasil e em Portugal têm havido os dois
tipos de comemoração. Uma das maneiras que meus colegas historiadores
inventam para discutir o assunto é falar de outros assuntos, mas
eu preferia falar apenas de Descobrimento. Caracterizar a viagem
de Cabral como a do "Descobrimento do Brasil" e a carta de Pero
Vaz de Caminha como uma "certidão de batismo" tem pressupostos que
precisam ser discutidos. Há um etnocentrismo evidente que expressa
a visão do conquistador, do vencedor. Os portugueses seriam o agente
e os índios, os "descobertos", os protagonistas passivos do episódio.
Folha - Seria então necessário também levar em conta o ponto
de vista dos índios?
Novais - A crítica do etnocentrismo é verdadeira e não é
nova. Mas isso não deve levar à idéia de que nós temos de reconstituir
a história do ponto de vista dos vencidos. Nós não podemos nos transformar
em índios. Uma coisa é fazer o estudo da visão dos índios e outra
é reconstituir a história a partir do seu ponto de vista. Há estudos
recentes de etno-história, como o que Padden fez no México e Wachteel
no Peru, em que se estuda como os índios perceberam o descobrimento,
a conquista e a colonização. São estudos de mentalidades. A história
precisa ultrapassar os pontos de vista do vencido e do vencedor
e dizer alguma coisa a mais. Como nação, somos herdeiros dos europeus,
dos índios e dos negros, mas todos não participam da mesma maneira
na nossa formação. Um foi o vencedor e os dois outros foram os vencidos.
Folha - Em 1500 não há, então, um "nascimento"?
Novais - Não há. Acreditar nisso seria incorrer num anacronismo,
que é a segunda observação que queria fazer. Curiosamente, os historiadores
têm discutido há bastante tempo o etnocentrismo, mas raramente discutem
o anacronismo. Quando se fala "Descobrimento do Brasil", o etnocentrismo
está no Descobrimento, e o anacronismo, na palavra Brasil.
Folha - O que é o anacronismo?
Novais - Para reconstituir determinado segmento do passado,
o historiador precisa esquecer o que ele sabe que aconteceu depois.
O historiador incorre no anacronismo quando ele imputa aos protagonistas
o conhecimento sobre os acontecimentos posteriores. A reconstituição
se torna uma "profecia do passado". Folha - É o que está
acontecendo agora?
Novais - Em todo o discurso historiográfico há o problema
do anacronismo. Porém, quando a nação é o objeto do discurso do
historiador, o perigo do anacronismo é muito maior, porque a nação
precisa de passado para se legitimar. Quanto maior o passado, melhor
a legitimação. Os franceses, por exemplo, vêem seu passado mais
remoto na Gália romana. No caso do Brasil, reconstituir a viagem
de Cabral como Descobrimento do Brasil pressupõe imaginar que ele
já sabia que iria se constituir no século 19 uma nação com esse
nome. Isso é anacronismo. E a viagem se torna fundadora, isto é,
um mito.
Folha - O que é, então, o Brasil?
Novais - O Brasil é um povo que se constituiu numa nação,
que por sua vez se organizou como Estado. Em 1500 não havia nenhuma
dessas três coisas. Logo, não houve Descobrimento do Brasil, porque
o Brasil não existia nem estava encoberto. O que naquele momento
surgiram foram as bases da colonização portuguesa, a qual por sua
vez é a base da nossa formação. A história do Brasil é essencialmente
a de uma colônia que se transformou numa nação. Logo, a colonização
é a base de nossa história e nesse sentido Cabral é importante.
Folha - O sentimento da diferença do colonizador é então
bem posterior?
Novais - Exatamente. Isso ocorreu quando a população começou
a se pensar como diferente de seus antecessores. Primeiro, luso-brasileiros.
Depois, menos lusos e mais brasileiros. Até se sentirem somente
brasileiros. Isso ocorre só a partir da segunda metade do século
18, e não antes.
Folha - Até então as pessoas não se sentiam "brasileiras"?
Novais - Até o início do século 19, "brasileiro" era o comerciante
do pau-brasil. É uma das diferenças entre os hispano-americanos
e os luso-americanos. Na América espanhola, desde o fim do século
16, os espanhóis nascidos na colônia se chamavam de "criollos".
Não há no Brasil palavra equivalente. Havia no Nordeste a palavra
"mazombo". A partir do século 17 usava-se por aqui a palavra "reinol"
para designar os portugueses nascidos em Portugal. Logo, diferentemente
dos hispano-americanos que se identificavam por aquilo que julgavam
ser ("nosotros somos criollos"), os luso-americanos identificavam-se
negativamente por aquilo que sabiam não ser ("nós não somos reinóis").
Isso é importante para compreendermos porque na América espanhola
o processo foi muito mais revolucionário. Por aqui foi uma transição
dinástica.
Folha - Os portugueses não queriam criar uma nação, mas
sim uma colônia.
Novais - Exato. A colonização não começou com Cabral. Começou
em 1532, com Martim Afonso de Souza. Reitero: a viagem de Cabral
é importante, mas não é "Descobrimento".
Folha - Quando as viagens começaram a ser denominadas como
"Descobrimento"?
Novais - Viagens no Atlântico existem sempre desde a alta
Idade Média. Mas eram isoladas e de cabotagem. A partir dos séculos
15 e 16 elas aumentam de número, passam a se articular, levando
a êxitos no reconhecimento do mundo, e são chamadas viagens de Descobrimentos.
Folha - Qual a importância desse novo tipo de viagem?
Novais - Até o século 16 as civilizações permaneciam insuladas.
Não há nenhum contato entre as civilizações ameríndias (incas, maias
e astecas) com as africanas. Não há nenhum contato dos africanos
com os chineses. O processo de desinsulamento das civilizações não
foi rápido nem excluiu a dominação. O insulamento foi superado,
mas isso pode ocorrer de forma perversa. Desinsulou-se a África
pelo tráfico. Começou um processo de integração que só hoje está
chegando ao final. Esse desinsulamento não ocorreu de forma generalizada.
Houve uma civilização, a cristandade ocidental medieval européia,
que realizou os contatos e promoveu o desinsulamento. Isso envolve
conquista, dominação, etc. Criticar os aspectos perversos não significa
ignorar que os europeus estabeleceram o contato das civilizações.
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