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documentário
02/09/2004
Diretora acha importante superar muro que separa asfalto e favela

Hércules, Hera, Ártemis, Efestos, Hermes e Dionísio circulam pelas vielas do Vidigal (favela da Zona Sul carioca) e trabalham muito. Os deuses gregos servem de referência para mostrar a realidade do dia-a-dia de algumas profissões típicas da favela - tema do documentário Vidigal Olimpo, primeiro longa de Luciana Bezerra, Pedro Rossi e Gabriela Maciel, do grupo Nós do Morro.

O moto-taxista, o catador de ferro velho, o carregador de material de construção, o prestamista (vendedor em domicílio de utilidades domésticas a prestação), a rezadeira, o sambista e as mulheres que tomam conta das crianças são os personagens da vida real focados em toda a sua grandiosidade e, até mesmo, heroísmo, pelo documentário.

Em seu cotidiano, eles quase sempre passam despercebidos. “Queremos mostrar que estes trabalhadores, que representam 99% das pessoas da comunidade, acreditam no que fazem, acordam às 5h da manhã todos os dias. São verdadeiros deuses glorificados”, explica Luciana.
A idéia surgiu da observação de alguns profissionais da comunidade, como o catador de ferro-velho, que chega a carregar até três geladeiras nas costas.

“Era a visão do próprio Hércules. Se uma pessoa não acredita na vida, o que faz ela acordar cedo para pegar em um batente destes?”, admira-se a cineasta. Luciana é, ela mesma, uma personagem curiosa. Moradora do Vidigal desde a adolescência, aos 30 anos já contabiliza 14 anos de experiência como atriz, além de ser diretora e roteirista de um curta-metragem premiado, o Mina de Fé - romance ficcional sobre o relacionamento entre uma menina e um chefe do tráfico de uma favela. Inscrito no concurso de roteiro da Rio Arte em 2002, faturou o primeiro lugar e levou R$ 50 mil para sua realização.

Um filme ou uma casa?
Fascinada por cinema, quando criança Luciana começou a sonhar com uma vida de atriz de Hollywood. Contrariando a vontade da mãe, que sonhava com uma carreira universitária e não media esforços para que a filha estudasse, ingressou num curso de teatro aos 16 anos, logo no início do Nós do Morro. “Passei um tempo da adolescência em crise com a minha escolha. Minha mãe só faltava pedir por favor para eu estudar. Não sabia como contar para ela que meu negócio era o teatro”, revela ela, que concluiu o ensino médio.

Na época, Luciana começou a trabalhar como recreadora em uma creche, em busca de uma profissionalização ainda indefinida. “Não sabia bem qual era o meu dom, mas tinha que começar por alguma coisa”, conta. A mãe, técnica em enfermagem, foi começando a se acostumar com as escolhas da filha e não chegou a se surpreender quando ela afirmou que investiria os R$ 50 mil do prêmio na realização do filme. Já o pai ficou chocado, e perguntou por que ela não investia o dinheiro num imóvel.

“O mais sensato para ele seria comprar uma casa. Fui conversar para explicar que este prêmio poderia abrir muitas portas no futuro e que fazer o curta era como obter um diploma de faculdade”, lembra. Quando o filme ficou pronto e foi exibido no Cine Odeon, no Centro da cidade, o pai estava lá e constatou a importância do investimento. “Ele veio até a mim para parabenizar pelo 'diploma da faculdade'. Foi muito fofo. Afinal, o que é uma casa perto de um sonho realizado?”, emociona-se.

Mesmo sem cursar a universidade, o talento de Luciana foi destaque no grupo de teatro do Nós do Morro. “Ela era muito aplicada e estudiosa, corria atrás dos mais diversos livros sobre história da arte, teatro e cinema. Trabalhou muito para lapidar sua vocação”, observa Vinícius Reis, um dos coordenadores do Núcleo de Cinema do Nós do Morro.

Na corda bamba
Assumir a profissão de artista não foi fácil. “O artista vive numa corda bamba. A corda balança o tempo todo e embaixo não tem rede para te segurar”, compara. Mas os altos e baixos da vida de atriz-roteirista-diretora não desanimam. E ela aproveita o que considera uma melhora da cena artística carioca para lançar novas idéias.

De 2000 para cá, diz Luciana, as coisas começaram a acontecer mais. "Quando a gente confronta as nossas questões com as de outros artistas, até os que têm mais grana, percebemos que são as mesmas”, analisa. O processo de criação é intenso. Atualmente afastada dos palcos, ela se dedica a escrever roteiros, contos e crônicas, além de dar aulas de cinema nas oficinas do Nós do Morro. Os temas e estilos são os mais diversos, incluindo contos marginais e crônicas femininas.

A temática feminina e a dificuldade dos relacionamentos humanos estão entre os assuntos preferidos. “Importante é tratar da dimensão humana. Somos todos muito parecidos. E a vida gira em torno das relações, como mãe x filho e homem x mulher. É claro que a situação é mais complicada para a mulher de favela, que ainda não tem noção da evolução que tem pela frente”, diz ela.

Filhos só no futuro
O cotidiano de Luciana é muito diferente do da maioria das mulheres de sua idade no Vidigal, muitas já com filhos no colo. A maternidade é um sonho que ela joga para o futuro, mesmo diante de uma certa pressão da 'família tradicional mineira': "Ainda não cheguei neste estágio...”, admite a caçula de três irmãs.

Até lá, ela ainda há de aprontar um monte de arte. Além de Vidigal Olimpo (ainda sem data para ficar pronto), das aulas, dos textos literários e dos diversos roteiros que nascem de idéias súbitas, ela pensa em inovar ainda mais. “O momento do Brasil é para dar a cara a tapa. Pensamos numa instalação, não é cinema nem teatro. Os artistas plásticos vão nos matar!”, provoca, brincalhona.

A idéia, na verdade, é construir uma espécie de barraco, onde as pessoas entrem, abram as “janelas” (representadas por telas de vídeo) e escutem os diversos sons da favela enquanto assistem às imagens. “Por enquanto é só uma idéia. Queremos passar a sensação desta coisa de todo mundo morar próximo um do outro, com uma diversidade enorme de sons”, conta.

Favela nos festivais
O cinema continua ocupando o local mais alto de seu Olimpo particular. Após finalizar o curta Mina de Fé, ela tenta exibi-lo sempre que possível. Selecionado para o Festival Internacional de Curtas de São Paulo será exibido na próxima terça-feira, dia 31 de agosto. Também participa da seleta lista de curtas do Festival do Rio em outubro. “É maravilhoso estar participando destes festivais. Vai haver muita troca com outros cineastas e muitas críticas importantes”.

As críticas, aliás, não parecem assustar essa carioca espevitada que sabe aprender com o erro e com a dificuldade. “Filmar o Mina de Fé foi um grande aprendizado. Tinha um trecho do roteiro que todos diziam que estava mal resolvido, era uma parte que eu considerava importante e não mexi até começarmos a rodar” conta.

No final das filmagens, prejudicadas por uma semana inteira de chuvas torrenciais, algumas cenas precisaram ser cortadas e remodeladas. Com a equipe estafada e prestes a se dissolver para cumprir outros compromissos, Luciana tinha apenas um dia para resolver tudo. “Passei a noite em claro e pedi a Santa Bárbara para me iluminar, já que ela tinha mandado aquele monte de chuva. No dia seguinte, cheguei no set com um novo roteiro, mesclei a tal cena complicada com uma outra e joguei para o começo do filme. Ficou muito melhor”, entusiasma-se.

Para os futuros artistas, ela ensina: “Fale de você! Olhe para o que acredita e vai encontrar alguém para te entender. A gente não está isolado e é isso que faz a rede!”. Luciana acha que o principal obstáculo para os jovens de comunidade é acreditar que é impossível superar o muro invisível que separa o asfalto da favela. “É um muro mais cruel do que o de Berlim. As pessoas acreditam que o povo daqui é meio esquisito. Mas a única diferença está no dinheiro na carteira e no tipo de cartão de crédito”, analisa.

Sem perceber, ela virou exemplo para os outros. Ao ser premiada e reconhecida, estimulou os mais novos e tornou os cursos de cinema cada vez mais concorridos. “Luciana fez parte da primeira turma, em 1996. Quando os trabalhos dela e do Gustavo Melo começaram a dar resultado, outros jovens da comunidade passaram a acreditar no audiovisual”, revela o professor Vinícius Reis.


MARIANA LEAL
do site VivaFavela

 
 
 

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