Nessa entrevista, o fotógrafo
João Roberto Ripper apresenta em detalhes a sua intenção
e a do fotógrafo Ricardo Funari, que juntos com o Observatório
de Favelas estão realizando o projeto Escola de Fotógrafos
Populares Imagens do Povo. Nas linhas a seguir, Ripper fala
das suas idéias sobre a profissão de fotógrafo,
do discurso que existe por trás das imagens e de como
o projeto da Escola se insere na sua larga trajetória
profissional.
Ao longo de quatro meses, participarão das oficinas
cerca de vinte jovens moradores de favelas cariocas. As aulas
estão sendo ministradas na Casa de Cultura da Maré.
Observatório de Favelas - Como surgiu
a idéia de fazer a oficina de fotografia e o banco
de imagens?
Ripper - Surgiu aos poucos através
das experiências que tive em projetos de documentação
em comunidades, como no Complexo Maré, além
da experiência do projeto Imagens da Terra. Vejo como
uma necessidade a democratização da fotografia
e isso significa não só o acesso de todos às
informações e imagens, mas também o acesso
aos meios de documentação.
OF - Você considera a atividade fotográfica
elitizada?
Ripper - Sim, embora não se exija
nível superior para exercer a profissão. Já
existem fotógrafos em áreas populares, mas ainda
é algo limitado. Há um leque de possibilidades
na área de fotografia, principalmente no que se refere
ao caráter documental. O desdobramento da fotografia
brasileira e seu avanço para área documental
é fruto do questionamento, da organização
e da discussão entre fotógrafos engajados em
um movimento que ocorreu há mais de 20 anos. Eram fotógrafos
com acesso mais amplo à cultura, aos estudos, à
educação. Ocorreu uma revolução
muito grande na fotografia, desde o fotojornalismo à
fotografia documental, que foi ampliada para a visão
da atividade fotográfica como forma de renda, uma profissão.
Nessa época, os fotógrafos brasileiros começaram
a ser muito reconhecidos.
OF - A idéia de desenvolver projetos
como o da Escola de Fotografia surgiu nessa época?
Ripper - Existiram belos projetos. Acho que
eles ficaram restritos à opção de sobreviver
de fotografia de documentos e shows. A opção
documental, mais ligada à fotografia enquanto um elemento
importante de formação, ainda não chegou
às áreas populares. É claro que quando
montamos o curso não pensamos em algo como um grilhão,
ou seja, quem participa do curso deve necessariamente ser
um documentarista. Queremos abrir possibilidades para formar
pessoas de maneira que elas possam trabalhar com uma perspectiva
de transformar as comunidades em que vivem. Falta um olhar
cúmplice com os agentes transformadores da nossa realidade.
Os agentes são os que sofrem a discriminação.
Desenvolver esse olhar é um dos objetivos do curso.
OF - A proposta do curso não deixa
de ser uma crítica ao olhar fotográfico sensacionalista
lançado amplamente sobre essas comunidades. A Escola,
ancorada nesse movimento de 20 anos atrás, tenta romper
com isso?
Ripper - É importante perceber que
o curso está acompanhado da proposta da agência
de fotografias Imagens do Povo. Essa formação
de fotógrafos aponta também para a possibilidade
das pessoas virem a trabalhar e deixar seus arquivos nessa
agência. Acho que essa possibilidade está dentro
da visão da fotografia documental e soma-se à
luta antiga dos fotógrafos de romper com o padrão
do jornal.
OF - Que padrão é esse?
Ripper - A fotografia é considerada
uma arte porque ela é a extensão da personalidade
do autor. Mas, nos jornais, os chefes de reportagens eram
considerados co-autores porque eles determinavam o tema e,
de uma certa forma, pregavam uma linha política para
a fotografia. O fotógrafo – no seu afã
de se manter empregado, como qualquer trabalhador e de buscar
espaço dentro desse mercado, com destaque para seu
trabalho –, acabava misturando seu olhar de autor com
o olhar da empresa.
Trata-se de uma luta antiga para descolonizar esse olhar,
ou seja, misturar seu olhar de autor em comunhão com
o olhar do fotografado e das comunidades onde ele vive. É
um aprendizado: fotografar aprendendo com quem você
está fotografando, aprendendo aquela realidade e aprendendo
como aquela imagem pode, de alguma maneira, ajudar a transformar.
Essa tentativa acompanha outras tentativas semelhantes desenvolvidas
nessas comunidades. Por exemplo, o Ceasm defende que você
atue, viva e sobreviva profissionalmente, mas trazendo o seu
trabalho também para própria comunidade, sem
que isso seja uma obrigação, um grilhão.
O curso se propõe a isso.
OF - E a romper com a linha sensacionalista
para lançar um olhar humano…
Ripper - Quer dizer, o olhar tradicional
sobre as comunidades demonstram uma forma pré- concebida.
Quando a documentação vai às áreas
populares ou às favelas, normalmente, já traz
incutida a idéia de que nesse lugar distante ele encontrará
uma culpa. Então, já chega pré-julgando.
Esse ré busca a culpa ou o culpado, a falta e a ausência,
quer dizer, espera também encontrar a ilegalidade nessas
áreas pobres. Não se vai aberto a encontrar
vida, descobrir o que acontece.
Além disso, acho que a forma como você divulga
as pessoas que vivem nas comunidades é uma forma muito
parecida de como sempre se documentou o trabalhador no Brasil.
Ele serve para aparecer como bonzinho se ele for do tipo “operário
padrão”. Às vezes, ele é mostrado
como alguém que tem raiva e que por isso faz greves,
anarquia, bagunça. Ou ainda, ele está desempregado
e é aquela pessoa que merece a pena da sociedade. Se
ele está produzindo dentro dos padrões que se
quer, ele não é visto nem como um ser humano,
mas como um parafuso, uma engrenagem a mais na construção
da máquina.
OF - Quer dizer, há todo um discurso
por trás das imagens.
Ripper - O fotógrafo muitas vezes
está inconsciente desse processo. Daí, quando
ele chega na favela é em busca da documentação
daquela pessoa que já tem a culpa: ali está
o marginal, ali está a pessoa que pratica um crime,
ali está a pessoa que cumpre ilegalidade. Ele não
busca entender como se vive em uma favela, como se trabalha
em uma favela, como se produz; assim como ele faz em qualquer
outro lugar. E qual é o discurso sobre esse número
imenso de pessoas moradores de comunidades, favelas ou periferias?
A vida dessas pessoas que compõem a maioria da população
brasileira é mostrada como minoria excluída.
É uma visão de exclusão formada com a
nossa ajuda, enquanto jornalistas, ao mostrar e assim fazer
a cabeça das pessoas...
OF - Romper com preconceitos, desnaturalizar…Esses
jovens alunos podem trazer esse novo olhar?
Ripper - Claro. Primeiro você leva
uma opção de mercado de documentação
a quem vive e trabalha nessas áreas. Para documentar,
ela já chega com experiência e como representante
de uma comunidade dessas. Já é uma grande conquista
que, inclusive, faz parte de uma grande discussão no
jornalismo: a de que o (foto)jornalista deve ser a voz de
quem não pode falar. Mas, na verdade, quem sou eu para
julgar que tal grupo não sabe falar ou não pode
falar e, portanto, falarei por eles? Não. Tem que ser
a voz deles. Então acho que é um passo concreto
para que seja a voz e a imagem deles.
A segunda discussão é: as comunidades vivem
da ausência, da falta ou da falha de cumprimento do
papel do Estado? Numa comunidade como o Chapéu Mangueira
ou a Nova Holanda, será que o Estado cuida das suas
praças com a mesma assiduidade, carinho e dedicação
que cuida de uma praça de Copacabana ou no Leblon?
O recolhimento do lixo, o tratamento do esgoto? Como desempenha
o Estado a sua função de permitir, criar e incentivar
o mercado de trabalho, o comércio? Temos que documentar
isso também. É uma tentativa de mudança,
um certo desafio. Se o Estado não leva isso…e
nós profissionais? E nós, documentaristas e
fotógrafos que dedicamos a vida a um questionamento
social e a usar a fotografia como agente transformar de uma
realidade?O jornalismo por muito tempo defendeu a imparcialidade,
o que é uma premissa totalmente hipócrita. Se
assumimos o discurso sobre o papel transformador, devemos
apresentar uma proposta para mudar uma situação.
Uma maneira de começar a transformar é proporcionar
ensino com qualidade a essas áreas.
Vida profissional
OF - Como que esse projeto se insere na sua trajetória
profissional?
Ripper - Ele é uma satisfação
enorme, pois me permite voltar à questão urbana.
Durante muito tempo me especializei na área rural.
Há muitos anos, trabalhei com comunidades em áreas
urbanas, especificamente, na Maré, onde cheguei a morar.
Depois de muitos anos tenho que me reeducar e reaprender sobre
o que é uma comunidade urbana e, principalmente, o
que são as áreas de favelas da cidade onde vivo.
Sou uma pessoa que dedicou a vida ao trabalho engajado, ao
estudo da fotografia, da política como documento, da
vida das pessoas. Depois de tanto tempo, percebi que estava
engatinhando no conhecimento das comunidades faveladas do
Rio de Janeiro. Tenho que questionar inúmeros preconceitos…
OF - Como começou sua trajetória?
Ripper - Trabalhei como repórter e
como fotógrafo no Diário de Notícias
e como fotógrafo no Última Hora. Me formei em
jornalismo, mas a paixão pela fotografia falou bem
mais alto. Depois passei pelos jornais A Hora do Povo, Estadão
e por muito tempo em O Globo. Rompi para participar de um
projeto que se chamava Agência F4, uma agência
independente, que impulsionou uma nova mentalidade. Atuei
muito no sindicato, na luta do direito autoral dos fotógrafos.
Como free lancer, através dessa agência, trabalhei
para vários locais. Mais tarde questionei isso e resolvi
criar um projeto que colocasse a fotografia a serviço
dos direitos humanos. Assim, criei o Imagens da Terra, junto
com outros fotógrafos. Atuamos por oito anos e falimos.
Era uma organização não-governamental
atípica porque não tinha financiamento. Era
sustentada por um grupo de fotógrafos. Acho que a gente
fez, talvez, a documentação social mais importante
que já tenha sido feita no Brasil. Tivemos erros fantásticos
de administração…enfim, éramos
nós que administrávamos tudo. Ao mesmo tempo,
tivemos essa virtude de não esperar e financiar todo
o trabalho. Hoje, desenvolvo o projeto Imagens Humanas, que
continua colocando a fotografia a serviço dos direitos
humanos. Trabalhando nesse projeto, me reaproximei do pessoal
do Observatório e do Ceasm.
OF - Quando pedimos um resumo da trajetória
profissional é sempre injusto, pois há tanta
coisa para contar e…
Ripper - Pois é… um barato é
o processo de independentemente documentar. Tem algumas coisas
legais: são 16 anos documentando os índios no
Mato Grosso do Sul; são quase cinco anos documentando
a questão da seca; seis anos documentando a questão
da discriminação de meninas em Natal –
com o Grupo Renascer; todos esses anos fotografando o trabalho
escravo e infantil. Durante um bom tempo passei documentando
também as comunidades urbanas e as favelas do Rio,
mas depois parei para ficar essas áreas mais rurais.
Você conhece pessoas e percebe que o fundamental é
ajudar a mudar essas realidades.
Organização da Escola
OF - O curso começa com a proposta de oferecer
uma alternativa de renda, uma profissão. Dá
para a gente vislumbrar o que mais pode-se alcançar
com esse projeto? Ele não se restringe simplesmente
a oferecer uma nova profissão.
Ripper - Acho que o curso tem algumas coisas
de diferentes. Nem melhor ou pior, mas diferentes por se basear
nas experiências minhas e do Ricardo Funari. Por exemplo,
notamos que a realidade documental e a realidade profissional
de um modo geral caminhavam muito para a substituição
do laboratório fotográfico tradicional pelo
tratamento digital da fotografia. Cada vez mais esse mercado
vai crescer. Com as dificuldades de ministrar aulas práticas
para bastante gente, principalmente financeiras, achamos melhor
investir em aprender a fotografar e tratar essa foto no computador,
no Photoshop, a arquivar e até a ter noções
de como jogar em um site. É uma maneira de preparar
o fotógrafo para enfrentar esse mercado. Vamos ter
que democratizar algumas aulas através de telões
e com datashow.
OF: Quais são os objetivos do curso assim planejado?
Ripper - Primeiro, permitir que a pessoa
escolha o caminho que vai seguir a partir do conhecimento
fotográfico. Se ele quer ser um fotógrafo da
comunidade ou fora da comunidade; fotógrafo de festas
sociais, os casamentos, reuniões e como sobreviver
disso. Além disso, o curso oferece um bocado de conhecimento
sobre a história da fotografia, os principais nomes,
os trabalhos que ajudaram em transformações.
Noções do direito autoral e respeito ao direito
de imagem das pessoas. Também abordaremos formas da
linguagem fotográfica. Antes de começar a fotografar,
vamos treinar em situações onde as pessoas tenham
que pensar a fotografia. A segunda parte do curso é
prática, onde ele pratica o ato de fotografar e depois
de trabalhar essa foto, escolhe e editar.
OF: A grade curricular parece bastante completa. As aulas
ficam serão ministradas por você e Ricardo Funari?
Ripper - Em princípio sim, mas vamos
ter fotógrafos convidados que vão fazer palestras.
Eu acho que vão ser bem ricas as experiências
desses fotógrafos.
OF: A ênfase do curso é a documental com a proposta
de transformação social.
Ripper - É. Queremos colocar questões.
Como é optar por um tipo de fotografia dessa? Como
é participar da transformação da realidade
que você documenta? Como colocar o seu trabalho a serviço
dessa transformação? Também queremos
passar opções de que nichos de mercado buscar
para colocar denúncias; como realizar um projeto autoral
e social... O aprendizado não é só técnico,
mas engloba a discussão de como buscar lugares no mercado.
OF - Quais são as parcerias que
possibilitaram realizar esse projeto?
Ripper - FURNAS é o financiador. Além
disso, contamos com parceiros em universidades e estamos tentando
permitir o acesso de alguns alunos que eventualmente já
tenham graduação a cursos de pós-graduação
de fotografias. Pretendemos no futuro transformar a idéia
desse curso em um processo de rede.
OF - A produção dos alunos
vai estar disponível no banco de imagens?
Ripper - A idéia é que os
alunos terminem o projeto com uma documentação
específica que, provavelmente, será uma documentação
voltada para as realidades das comunidades de onde os alunos
vieram. Será um processo coletivo de documentar essa
realidade. Depois,vamos colocar em um site para que todo mundo
veja o resultado. Haverá uma edição do
material produzido pelos alunos que quiserem deixar no acervo
do Imagens do Povo. Cada vez que esse material for vendido
na agência Imagens do Povo, os fotógrafos recebem
como de praxe no mercado. O diferencial é que os fotógrafos
que participarem desse projeto também assinam uma liberação
de direitos autorais para a utilização por comunidades
em defesa de causas sociais de pessoas que não podem
pagar.
THAIS AGUIAS
MONIQUE CARVALHO
do site Observatório de Favelas
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