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entrevista
20/07/2004
A fotografia como instrumento de transformação

Nessa entrevista, o fotógrafo João Roberto Ripper apresenta em detalhes a sua intenção e a do fotógrafo Ricardo Funari, que juntos com o Observatório de Favelas estão realizando o projeto Escola de Fotógrafos Populares Imagens do Povo. Nas linhas a seguir, Ripper fala das suas idéias sobre a profissão de fotógrafo, do discurso que existe por trás das imagens e de como o projeto da Escola se insere na sua larga trajetória profissional.

Ao longo de quatro meses, participarão das oficinas cerca de vinte jovens moradores de favelas cariocas. As aulas estão sendo ministradas na Casa de Cultura da Maré.

Observatório de Favelas - Como surgiu a idéia de fazer a oficina de fotografia e o banco de imagens?
Ripper - Surgiu aos poucos através das experiências que tive em projetos de documentação em comunidades, como no Complexo Maré, além da experiência do projeto Imagens da Terra. Vejo como uma necessidade a democratização da fotografia e isso significa não só o acesso de todos às informações e imagens, mas também o acesso aos meios de documentação.

OF - Você considera a atividade fotográfica elitizada?
Ripper - Sim, embora não se exija nível superior para exercer a profissão. Já existem fotógrafos em áreas populares, mas ainda é algo limitado. Há um leque de possibilidades na área de fotografia, principalmente no que se refere ao caráter documental. O desdobramento da fotografia brasileira e seu avanço para área documental é fruto do questionamento, da organização e da discussão entre fotógrafos engajados em um movimento que ocorreu há mais de 20 anos. Eram fotógrafos com acesso mais amplo à cultura, aos estudos, à educação. Ocorreu uma revolução muito grande na fotografia, desde o fotojornalismo à fotografia documental, que foi ampliada para a visão da atividade fotográfica como forma de renda, uma profissão. Nessa época, os fotógrafos brasileiros começaram a ser muito reconhecidos.

OF - A idéia de desenvolver projetos como o da Escola de Fotografia surgiu nessa época?
Ripper - Existiram belos projetos. Acho que eles ficaram restritos à opção de sobreviver de fotografia de documentos e shows. A opção documental, mais ligada à fotografia enquanto um elemento importante de formação, ainda não chegou às áreas populares. É claro que quando montamos o curso não pensamos em algo como um grilhão, ou seja, quem participa do curso deve necessariamente ser um documentarista. Queremos abrir possibilidades para formar pessoas de maneira que elas possam trabalhar com uma perspectiva de transformar as comunidades em que vivem. Falta um olhar cúmplice com os agentes transformadores da nossa realidade. Os agentes são os que sofrem a discriminação. Desenvolver esse olhar é um dos objetivos do curso.

OF - A proposta do curso não deixa de ser uma crítica ao olhar fotográfico sensacionalista lançado amplamente sobre essas comunidades. A Escola, ancorada nesse movimento de 20 anos atrás, tenta romper com isso?
Ripper - É importante perceber que o curso está acompanhado da proposta da agência de fotografias Imagens do Povo. Essa formação de fotógrafos aponta também para a possibilidade das pessoas virem a trabalhar e deixar seus arquivos nessa agência. Acho que essa possibilidade está dentro da visão da fotografia documental e soma-se à luta antiga dos fotógrafos de romper com o padrão do jornal.

OF - Que padrão é esse?
Ripper - A fotografia é considerada uma arte porque ela é a extensão da personalidade do autor. Mas, nos jornais, os chefes de reportagens eram considerados co-autores porque eles determinavam o tema e, de uma certa forma, pregavam uma linha política para a fotografia. O fotógrafo – no seu afã de se manter empregado, como qualquer trabalhador e de buscar espaço dentro desse mercado, com destaque para seu trabalho –, acabava misturando seu olhar de autor com o olhar da empresa.

Trata-se de uma luta antiga para descolonizar esse olhar, ou seja, misturar seu olhar de autor em comunhão com o olhar do fotografado e das comunidades onde ele vive. É um aprendizado: fotografar aprendendo com quem você está fotografando, aprendendo aquela realidade e aprendendo como aquela imagem pode, de alguma maneira, ajudar a transformar.

Essa tentativa acompanha outras tentativas semelhantes desenvolvidas nessas comunidades. Por exemplo, o Ceasm defende que você atue, viva e sobreviva profissionalmente, mas trazendo o seu trabalho também para própria comunidade, sem que isso seja uma obrigação, um grilhão. O curso se propõe a isso.

OF - E a romper com a linha sensacionalista para lançar um olhar humano…
Ripper - Quer dizer, o olhar tradicional sobre as comunidades demonstram uma forma pré- concebida. Quando a documentação vai às áreas populares ou às favelas, normalmente, já traz incutida a idéia de que nesse lugar distante ele encontrará uma culpa. Então, já chega pré-julgando. Esse ré busca a culpa ou o culpado, a falta e a ausência, quer dizer, espera também encontrar a ilegalidade nessas áreas pobres. Não se vai aberto a encontrar vida, descobrir o que acontece.

Além disso, acho que a forma como você divulga as pessoas que vivem nas comunidades é uma forma muito parecida de como sempre se documentou o trabalhador no Brasil. Ele serve para aparecer como bonzinho se ele for do tipo “operário padrão”. Às vezes, ele é mostrado como alguém que tem raiva e que por isso faz greves, anarquia, bagunça. Ou ainda, ele está desempregado e é aquela pessoa que merece a pena da sociedade. Se ele está produzindo dentro dos padrões que se quer, ele não é visto nem como um ser humano, mas como um parafuso, uma engrenagem a mais na construção da máquina.

OF - Quer dizer, há todo um discurso por trás das imagens.
Ripper - O fotógrafo muitas vezes está inconsciente desse processo. Daí, quando ele chega na favela é em busca da documentação daquela pessoa que já tem a culpa: ali está o marginal, ali está a pessoa que pratica um crime, ali está a pessoa que cumpre ilegalidade. Ele não busca entender como se vive em uma favela, como se trabalha em uma favela, como se produz; assim como ele faz em qualquer outro lugar. E qual é o discurso sobre esse número imenso de pessoas moradores de comunidades, favelas ou periferias? A vida dessas pessoas que compõem a maioria da população brasileira é mostrada como minoria excluída. É uma visão de exclusão formada com a nossa ajuda, enquanto jornalistas, ao mostrar e assim fazer a cabeça das pessoas...

OF - Romper com preconceitos, desnaturalizar…Esses jovens alunos podem trazer esse novo olhar?
Ripper - Claro. Primeiro você leva uma opção de mercado de documentação a quem vive e trabalha nessas áreas. Para documentar, ela já chega com experiência e como representante de uma comunidade dessas. Já é uma grande conquista que, inclusive, faz parte de uma grande discussão no jornalismo: a de que o (foto)jornalista deve ser a voz de quem não pode falar. Mas, na verdade, quem sou eu para julgar que tal grupo não sabe falar ou não pode falar e, portanto, falarei por eles? Não. Tem que ser a voz deles. Então acho que é um passo concreto para que seja a voz e a imagem deles.

A segunda discussão é: as comunidades vivem da ausência, da falta ou da falha de cumprimento do papel do Estado? Numa comunidade como o Chapéu Mangueira ou a Nova Holanda, será que o Estado cuida das suas praças com a mesma assiduidade, carinho e dedicação que cuida de uma praça de Copacabana ou no Leblon? O recolhimento do lixo, o tratamento do esgoto? Como desempenha o Estado a sua função de permitir, criar e incentivar o mercado de trabalho, o comércio? Temos que documentar isso também. É uma tentativa de mudança, um certo desafio. Se o Estado não leva isso…e nós profissionais? E nós, documentaristas e fotógrafos que dedicamos a vida a um questionamento social e a usar a fotografia como agente transformar de uma realidade?O jornalismo por muito tempo defendeu a imparcialidade, o que é uma premissa totalmente hipócrita. Se assumimos o discurso sobre o papel transformador, devemos apresentar uma proposta para mudar uma situação. Uma maneira de começar a transformar é proporcionar ensino com qualidade a essas áreas.

Vida profissional
OF -
Como que esse projeto se insere na sua trajetória profissional?
Ripper - Ele é uma satisfação enorme, pois me permite voltar à questão urbana. Durante muito tempo me especializei na área rural. Há muitos anos, trabalhei com comunidades em áreas urbanas, especificamente, na Maré, onde cheguei a morar. Depois de muitos anos tenho que me reeducar e reaprender sobre o que é uma comunidade urbana e, principalmente, o que são as áreas de favelas da cidade onde vivo. Sou uma pessoa que dedicou a vida ao trabalho engajado, ao estudo da fotografia, da política como documento, da vida das pessoas. Depois de tanto tempo, percebi que estava engatinhando no conhecimento das comunidades faveladas do Rio de Janeiro. Tenho que questionar inúmeros preconceitos…

OF - Como começou sua trajetória?
Ripper - Trabalhei como repórter e como fotógrafo no Diário de Notícias e como fotógrafo no Última Hora. Me formei em jornalismo, mas a paixão pela fotografia falou bem mais alto. Depois passei pelos jornais A Hora do Povo, Estadão e por muito tempo em O Globo. Rompi para participar de um projeto que se chamava Agência F4, uma agência independente, que impulsionou uma nova mentalidade. Atuei muito no sindicato, na luta do direito autoral dos fotógrafos. Como free lancer, através dessa agência, trabalhei para vários locais. Mais tarde questionei isso e resolvi criar um projeto que colocasse a fotografia a serviço dos direitos humanos. Assim, criei o Imagens da Terra, junto com outros fotógrafos. Atuamos por oito anos e falimos. Era uma organização não-governamental atípica porque não tinha financiamento. Era sustentada por um grupo de fotógrafos. Acho que a gente fez, talvez, a documentação social mais importante que já tenha sido feita no Brasil. Tivemos erros fantásticos de administração…enfim, éramos nós que administrávamos tudo. Ao mesmo tempo, tivemos essa virtude de não esperar e financiar todo o trabalho. Hoje, desenvolvo o projeto Imagens Humanas, que continua colocando a fotografia a serviço dos direitos humanos. Trabalhando nesse projeto, me reaproximei do pessoal do Observatório e do Ceasm.

OF - Quando pedimos um resumo da trajetória profissional é sempre injusto, pois há tanta coisa para contar e…
Ripper - Pois é… um barato é o processo de independentemente documentar. Tem algumas coisas legais: são 16 anos documentando os índios no Mato Grosso do Sul; são quase cinco anos documentando a questão da seca; seis anos documentando a questão da discriminação de meninas em Natal – com o Grupo Renascer; todos esses anos fotografando o trabalho escravo e infantil. Durante um bom tempo passei documentando também as comunidades urbanas e as favelas do Rio, mas depois parei para ficar essas áreas mais rurais. Você conhece pessoas e percebe que o fundamental é ajudar a mudar essas realidades.

Organização da Escola
OF -
O curso começa com a proposta de oferecer uma alternativa de renda, uma profissão. Dá para a gente vislumbrar o que mais pode-se alcançar com esse projeto? Ele não se restringe simplesmente a oferecer uma nova profissão.
Ripper - Acho que o curso tem algumas coisas de diferentes. Nem melhor ou pior, mas diferentes por se basear nas experiências minhas e do Ricardo Funari. Por exemplo, notamos que a realidade documental e a realidade profissional de um modo geral caminhavam muito para a substituição do laboratório fotográfico tradicional pelo tratamento digital da fotografia. Cada vez mais esse mercado vai crescer. Com as dificuldades de ministrar aulas práticas para bastante gente, principalmente financeiras, achamos melhor investir em aprender a fotografar e tratar essa foto no computador, no Photoshop, a arquivar e até a ter noções de como jogar em um site. É uma maneira de preparar o fotógrafo para enfrentar esse mercado. Vamos ter que democratizar algumas aulas através de telões e com datashow.

OF: Quais são os objetivos do curso assim planejado?
Ripper - Primeiro, permitir que a pessoa escolha o caminho que vai seguir a partir do conhecimento fotográfico. Se ele quer ser um fotógrafo da comunidade ou fora da comunidade; fotógrafo de festas sociais, os casamentos, reuniões e como sobreviver disso. Além disso, o curso oferece um bocado de conhecimento sobre a história da fotografia, os principais nomes, os trabalhos que ajudaram em transformações. Noções do direito autoral e respeito ao direito de imagem das pessoas. Também abordaremos formas da linguagem fotográfica. Antes de começar a fotografar, vamos treinar em situações onde as pessoas tenham que pensar a fotografia. A segunda parte do curso é prática, onde ele pratica o ato de fotografar e depois de trabalhar essa foto, escolhe e editar.

OF: A grade curricular parece bastante completa. As aulas ficam serão ministradas por você e Ricardo Funari?
Ripper - Em princípio sim, mas vamos ter fotógrafos convidados que vão fazer palestras. Eu acho que vão ser bem ricas as experiências desses fotógrafos.

OF: A ênfase do curso é a documental com a proposta de transformação social.
Ripper - É. Queremos colocar questões. Como é optar por um tipo de fotografia dessa? Como é participar da transformação da realidade que você documenta? Como colocar o seu trabalho a serviço dessa transformação? Também queremos passar opções de que nichos de mercado buscar para colocar denúncias; como realizar um projeto autoral e social... O aprendizado não é só técnico, mas engloba a discussão de como buscar lugares no mercado.

OF - Quais são as parcerias que possibilitaram realizar esse projeto?
Ripper - FURNAS é o financiador. Além disso, contamos com parceiros em universidades e estamos tentando permitir o acesso de alguns alunos que eventualmente já tenham graduação a cursos de pós-graduação de fotografias. Pretendemos no futuro transformar a idéia desse curso em um processo de rede.

OF - A produção dos alunos vai estar disponível no banco de imagens?
Ripper - A idéia é que os alunos terminem o projeto com uma documentação específica que, provavelmente, será uma documentação voltada para as realidades das comunidades de onde os alunos vieram. Será um processo coletivo de documentar essa realidade. Depois,vamos colocar em um site para que todo mundo veja o resultado. Haverá uma edição do material produzido pelos alunos que quiserem deixar no acervo do Imagens do Povo. Cada vez que esse material for vendido na agência Imagens do Povo, os fotógrafos recebem como de praxe no mercado. O diferencial é que os fotógrafos que participarem desse projeto também assinam uma liberação de direitos autorais para a utilização por comunidades em defesa de causas sociais de pessoas que não podem pagar.


THAIS AGUIAS
MONIQUE CARVALHO
do site Observatório de Favelas

 
 
 

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