Escola
de lapidação de esmeraldas
Na quinta-feira
passada, Esmeralda Ortiz, de 21 anos, mais uma vez entrou
na categoria de exceções, quando leu seu nome
numa lista de aprovados no vestibular.
Negra,
filha de pai desconhecido e de mãe alcoólatra,
ex-menina de rua, ex-viciada em drogas, ex-traficantes de
crack e ex-líder de quadrilha de adolescentes, ela
viu quase todos os seus parceiros e colegas morrerem, vítimas
de tiros ou de doenças que prosperaram por falta de
cuidados.
Apenas
o fato de ter sobrevivido já a colocaria na categoria
de exceção. Mais excepcional ainda foi investir
nos estudos; adolescente, não tinha completado a quarta
série do ensino fundamental. "Eu me sentia burra,
não conseguia entender nada na escola", dizia.
O máximo que se imagina para esse tipo de sobrevivente
são cursos profissionalizantes, desses que se limitam
a trabalhos manuais.
Quando
decidiu escrever sobre suas experiências, encontrou
na obviedade de seu isolamento o título do livro: "Por
que não dancei". O relato de uma ex-quase morta,
que rabiscava na rua suas poesias em cadernos sujos.
Sem educação formal, Esmeralda enfrentou a norma
culta da língua portuguesa, com seu emaranhado de concordâncias
verbais e nominais, como enfrentou os desafios da rua. Apanhava,
mas também batia, assessorada por uma professora de
português (Alda Beraldo) e por uma estudante de pedagogia
(Raquel de Souza) da Universidade de São Paulo.
No final
do livro, em que conta sua trajetória, expôs
dois projetos: ter uma família e, quem sabe, cursar
uma faculdade.
Não
queria mais ser "ex"; queria montar um projeto de
futuro. "Não vou ficar 'cafetinando' meu passado".
Entrou
na briga. Foi no supletivo noturno oferecido pelo Colégio
Santa Cruz, aonde chegava de bicicleta. Alugou, nas proximidades,
um quarto nos fundos de uma casa.
Antes
de começar as aulas, parava na residência de
Heloísa Prieto, autora de livros infanto-juvenis, para
treinar redação. Em meio a sanduíches
rapidamente devorados por Esmeralda, escreviam a quatro mãos
uma estória para crianças.
Para ganhar
a vida, trabalha num programa de arte-educação
- aprendeu com a artista plástica Flávia del
Prá como produzir mosaicos de azulejos - e dá
palestras nas escolas que adotam seu livro, já na sexta
edição.
Em dezembro,
começou a percorrer a maratona dos vestibulares sem
muita esperança, especialmente nas instituições
públicas. Na semana passada, experimentou a doce vertigem
de ver seu nome na lista da Universidade Anhembi-Morumbi.
"É apenas o começo", comemora, sem
saber que, certamente, está ajudando a mudar a história
do ensino superior do Brasil.
A história
é maior do que se imagina. Quando uma ex-menina de
rua faz da faculdade um sonho, há algo de novo no país.
Por todo o Brasil, disseminam-se nas comunidades mais pobres
cursinhos pré-vestibular oferecidos gratuitamente.
Um dos mais notáveis exemplos é o cursinho dos
alunos da Escola Politécnica da Universidade de São
Paulo.
Esse movimento
é resultado da percepção, difundida principalmente
entre os mais pobres, de que o progresso individual depende,
em boa medida, de um diploma de ensino superior. É
a tradução das demandas do que se convencionou
chamar de sociedade do conhecimento.
Abre-se,
porém, um novo e gigantesco flanco de tensões,
a ser administrado pelos próximos governos: como aumentar
rapidamente vagas nas universidades federais e estaduais?
Ou como financiar os alunos que entram nas faculdades privadas,
obrigados a enfrentar juros proibitivos, sem "estrangulá-los'?
O chamado
"apartheid social" é escancarado na questão
do vestibular. Nos últimos tempos, alguns intelectuais,
tolos ou ingênuos, publicaram pesquisas mostrando que
uma quantidade expressiva de alunos de escolas públicas
entrava nas melhores universidades federais ou estaduais.
Com isso,
justificavam involuntariamente a perversidade de um sistema
que exime brasileiros de altos poder aquisitivo de pagar mensalidades.
No entanto,
entre os aprovados para os cursos mais disputados (medicina,
jornalismo, publicidade e engenharia, por exemplo), há
poucos estudantes oriundos de escolas públicas.
Obrigatoriamente
vai estar na agenda brasileira popularizar as universidades
públicas, criando-se cursos mais curtos (seqüenciais),
mais voltados ao mercado de trabalho. E, simultaneamente,
complementação escolar para recuperar o tempo
perdido, a exemplo do que acontece nos Estados Unidos.
A escola
é o melhor lugar para lapidar esmeralda.
PS - Uma
das tarefas mais importantes dos próximos presidentes
é investir pesadamente no ensino médio, cada
vez mais inchado e desaparelhado. Não é só
uma questão de educação, mas de segurança.
Sem uma política para manter a juventude em sala de
aula, não haverá sociedade que consiga enfrentar
a violência.
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