Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
04/03/2006 - 16h32

Não existe almoço grátis

Publicidade

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES
Especial para a Folha de S.Paulo

Fui convidado para comentar a crise universitária brasileira, particularmente três episódios recentes (crise na PUC-SP; demissão na Fundação Getúlio Vargas-SP e greve das universidades federais), a partir da minha experiência em universidades americanas.

Porém seria metodologicamente errado pinçar as universidades brasileiras e norte-americanas e compará-las fora de contexto. Elas são contexto-dependentes. Os EUA são um país muito diferente do Brasil (e dos demais países industriais também).

O sociólogo Seymour Lipset, em "American Excepcionalism" [Excepcionalismo Americano, ed. Norton, EUA], argumentou, com fartos dados, que os EUA são minimalistas no que concerne o Estado e o setor público em geral. Qualquer gasto público encontra logo a pergunta: "Quem paga por isso?".

Nos EUA, os gastos públicos sociais representavam apenas 15% do PNB [Produto Nacional Bruto], em contraste com a Europa Ocidental, que investia 24%; já a participação do setor privado nos gastos sociais era 41% nos EUA, ao passo que na União Européia variava de 17% no Reino Unido a 1,5% na Espanha. Na península Ibérica, como na América Latina, é baixíssima a participação do setor privado nos gastos sociais.

Estado místico

Pouquíssimos americanos acham que a educação superior seja uma obrigação do Estado. A afirmação de que "a universidade tem que ser pública, gratuita e de qualidade" é absurda no contexto americano, onde predominam os modelos que somam zero: se um gasto é criado, alguém tem que pagar por ele. O setor público não tira dinheiro do ar. Não há "free lunch". Nada é de graça, nada pode ser de graça. O dinheiro sai de algum lugar, em geral do bolso do contribuinte.

Os brasileiros têm uma visão mística do Estado, ao passo que os americanos o desmistificaram. Se o Estado gastar mais, os americanos gastarão menos. Os estudantes americanos pagam caro pela educação: uma das universidades públicas estaduais mais baratas dos Estados Unidos é a de Arizona, cujas taxas e matrícula custam perto de R$ 10 mil por ano. Já um aluno de graduação em Harvard gastará, em 2005-6, US$ 38 mil [R$ 88 mil] em nove meses, incluindo casa e comida.

Como pagam a conta? Muitos trabalham desde cedo e economizam, juntamente com os pais. É o principal projeto dos pais e dos filhos. Requer sacrifício. As bolsas são raras, mas os empréstimos a estudantes são freqüentes. A lógica do sistema ensina que a renda futura dos estudantes aumentará dramaticamente em razão de seus estudos. Terão condições de pagar.

Dessa maneira, o estudo de alguns não onera outros. Não obstante parte do problema financeiro da PUC-SP se deve à inadimplência dos estudantes já formados que não pagaram seus empréstimos.

O contraste com o Brasil, onde os pobres pagam pela educação dos ricos e da classe média, é doloroso.

Os EUA gastam mais com a educação superior --7% do PNB-- do que a União Européia, que gasta entre 5% e 6%. Outra contabilidade, mais restrita, feita pelo Sutton Trust, nos proporciona números diferentes relativos a 2003: 2,7%, em contraste com 1,3% da UE, com o Reino Unido gastando apenas 1%. A origem desses gastos, porém, é diferente: nos EUA, quem estuda paga; na União Européia, como no Brasil, outros pagam pelos que estudam.

O modelo universitário americano funciona? Lá, funciona: é menos elitista do que o europeu --perto de dois terços dos jovens americanos entre 20 e 24 anos estão nas universidades e "colleges", aproximadamente o dobro da percentagem dos principais países europeus, que andam perto de um terço.

O patrimônio das universidades americanas é muito maior: Oxford e Cambridge parecem pequenas em comparação com as maiores universidades de hoje, sua posição sendo a de 15ª --nenhuma outra universidade britânica estaria entre as 150 maiores do mundo.

Desproporção

A qualidade, expressa em pesquisas, prêmios e reconhecimento público, é muito maior nas universidades americanas. Até 2003, o país recebeu mais prêmios Nobel em ciência do que os cinco principais países europeus somados (Alemanha, Reino Unido, França, Holanda e Rússia), mas essa é uma história incompleta. O grosso dos prêmios da Alemanha e, sobretudo, da França e do Reino Unido, foi obtido no passado distante. Oxford e Cambridge chegaram a dominar o cenário institucional, mas o declínio da Inglaterra foi acentuado. A Alemanha apresentou a maior produção científica entre os países até 1920-29: os alemães receberam 30% dos prêmios Nobel antes da Segunda Guerra, mas menos de 10% desde 1940.

Os EUA, nas duas primeiras décadas do século 20, receberam apenas três e quatro prêmios, respectivamente. Sete décadas mais tarde o número aumentou para 65! Se usarmos patentes, citações, publicações em revistas com prestígio, impacto das revistas e outros indicadores de excelência, a preponderância americana é muito grande, e a preponderância das universidades americanas é acachapante. Mais da metade das citações científicas são feitas a pesquisadores em instituições americanas, o Reino Unido vindo em segundo, distante, com 9%.

Há diferenças entre o comportamento dos professores nos EUA e no Brasil. Minha experiência diz que os professores lá trabalham, na média, muito mais do que nas federais daqui. Mesmo nas melhores universidades, a praxe é dar dois cursos, um na graduação e outro na pós; todos ou quase todos pesquisam e publicam. São avaliados pela produção, pelo ensino, pela obtenção de recursos e pelo serviço que prestam à profissão e à universidade, que inclui participação em comitês, associações profissionais etc.

Os poucos que não pesquisam e não publicam não são bem vistos pelos colegas, mas compensam dando mais cursos, fazendo mais trabalho burocrático, orientando mais alunos. Nos "colleges" de dois anos e em alguns dos de quatro anos, a carga docente é muito maior.

O que diferencia as universidades públicas brasileiras das americanas é a distribuição do trabalho e da produção. Temos professores e pesquisadores excepcionais, mas o baixo clero, no Brasil, é maioria e pesa muito. O etos não é acadêmico e científico, mas burocrático-sindical e, freqüentemente, político-ideológico. Pressões para pesquisar e dar aulas, em algumas instituições, causam escárnio e acusações de fordismo e meritocratismo.

Greves de professores e funcionários de universidades são difíceis de entender nos EUA e as de alunos são impensáveis: afinal, eles são os que mais perdem. Há algum tempo, realizei uma pesquisa para a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] na Inglaterra, quando um bolsista achou que eu era um funcionário da casa e ameaçou abandonar os estudos caso o valor das bolsas não fosse reajustado. Estava fazendo um favor à Capes. Ameaça interessante...

A irresponsabilidade de professores, funcionários e alunos de federais e estaduais só pode ser entendida a partir de uma forte tradição corporativista, junto com o que o antropólogo Roberto DaMatta chama da "ética do privilégio".

A elite e a classe média acham normal não pagar nada nas universidades, nem o estacionamento de seus carros, mas acham absurdo que as empregadas domésticas tenham direitos trabalhistas. A ética do privilégio não é questionada.

As caça-níqueis

Vinculo a crise financeira de várias instituições universitárias ao crescimento das faculdades caça-níqueis. Algumas dessas instituições são vergonhosas, de baixíssimo nível, mas "roubam" alunos de instituições mais sérias, como as PUCs. A entrada é muito mais fácil, e o custo é consideravelmente menor.

As instituições públicas também retiram alunos pagantes das fundações e instituições privadas sem objetivo de lucro, que ficaram espremidas entre elas e as caça-níqueis.

Porém algumas esqueceram que são privadas e que não contam com recursos públicos regulares e se comportam como se fossem públicas. A cobrança, tanto dos alunos devedores quanto dos professores improdutivos, não é muito maior do que nas instituições públicas. Estão protegidos pela ética do privilégio.

No Brasil, algumas instituições pequenas apresentam uma produtividade muito maior do que as universidades públicas: na década de 80, fiz uma comparação entre a produção científica do Iuperj [Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro] --então com 22 professores-- e as demais instituições das ciências sociais no Rio de Janeiro.

A produção era maior do que a da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense e PUC (RJ) consideradas em conjunto. Como em alguns departamentos os professores não fazem pesquisas nem sabem como, a demanda por pesquisas mudou para fundações e instituições privadas, muitas das quais são ONGs. Essa mudança foi ajudada pela burocracia impenetrável e pela instabilidade das universidades.

Aulas e pesquisas

É difícil imaginar a demissão do professor Marcelo Neves acontecendo numa universidade norte-americana. Negar ao professor licença para participar da Anpocs dificilmente aconteceria. As universidades de qualidade estimulam seus professores a irem a congressos relevantes e apresentarem trabalhos.

Em geral, vários professores e alguns alunos participam dos principais congressos e todos tomam as medidas necessárias para não prejudicar as aulas. Em contraste, nas instituições dedicadas ao ensino, como os "colleges" menores, a participação em congressos e seminários é muito pequena, mas não é desestimulada. Porém a participação, como observador, de eleições em outro país durante três semanas --se for essa a duração-- excede os parâmetros que conheço.

Muitos colegas participaram, como observadores, das difíceis eleições na América Central, após guerras civis. Vi e participei de eventos semelhantes, mas de duração muito menor, além do que os participantes tinham muito tempo de casa. Ou seja, a participação em eventos é corriqueira, dependendo do caráter da instituição, da duração da licença e da antigüidade do docente.

A existência de uma lista internacional de protesto contra a demissão também seria inusitada em instituições americanas, exceto em questões relacionadas a perseguições políticas. As demissões são vistas como uma questão interna das instituições. As demissões de professores, raras no Brasil e raríssimas nas federais e estaduais brasileiras, são freqüentes nos EUA, onde os professores iniciantes só adquirem estabilidade após quatro a seis anos de casa. A maioria não a adquire.

Não obstante decisões desse tipo são tomadas em coletivos com a participação de professores de mais graduação.

Tratamos de instituições, países e culturas diferentes, sendo equivocado comparar as universidades fora de contexto. Não é tão simples.

Gláucio Ary Dillon Soares é doutor em sociologia pela Universidade de Washington e professor aposentado da Universidade da Flórida (EUA). É autor de "A Democracia Interrompida" (FGV), entre outros livros.

Leia mais
  • Universidades fora de foco
  • Quanto vale ou é por quilo?
  • Massa e elite racham sistema universitário francês
  • A missão reguladora
  •  

    Publicidade

    Publicidade

    Publicidade


    Voltar ao topo da página