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10/01/2007 - 19h23

Chávez usa a nacionalização para controlar o povo, diz sociólogo

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ANDREA MURTA
da Folha Online

O controverso programa de nacionalizações anunciado pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que tomou posse nesta quarta-feira após ser reeleito com quase 63% dos votos populares, em pleito realizado em 3 de dezembro último, tem como objetivo real o controle das informações e o domínio da sociedade em seu país.

A avaliação é do doutor em sociologia e professor da Universidade Central da Venezuela Trino Márquez, 56, que concedeu entrevista à Folha Online, por telefone, de Caracas. "Chávez não tem a menor necessidade de realizar essas nacionalizações".

Reprodução
O sociólogo e professor venezuelano Trino Márquez
O sociólogo e professor venezuelano Trino Márquez
O presidente anunciou, durante um discurso na última segunda-feira (8), que pretende estatizar empresas de telecomunicações e eletricidade da Venezuela. As nacionalizações seriam mais um passo em direção ao socialismo que, para o presidente, irá "salvar o país". Ele citou como candidatas a estatização as empresas Cantv (telefonia) e Electricidad de Caracas.

A Cantv, uma das principais empresas de telecomunicações do país, domina a internet e a telefonia fixa, além de ser operadora de telefonia celular na Venezuela. E é conhecida por ser de oposição a Chávez.

"O Estado venezuelano controla a indústria petroleira, que é o setor mais importante do país, assim como domina outros setores básicos. Do total de divisas que entram na Venezuela [cerca de US$ 60 bilhões], o Estado é proprietário de ao menos US$ 52 bilhões. Ou seja, Chávez não precisa absolutamente nem reestatizar a empresa telefônica nem a de eletricidade", diz o sociólogo.

Márquez criticou duramente o governo de Chávez, cuja condução chamou de "arrogante", e disse que o presidente "acredita estar implantando uma 'ideocracia' na Venezuela. "Aqui, para se ocupar os altos cargos em qualquer setor do governo, é preciso ser chavista incondicional. Imagine o que ocorrerá em empresas estatizadas."

Leia a seguir íntegra da entrevista concedida à Folha Online.

Folha Online - É correto dizer que Chávez busca controlar a informação difundida na Venezuela ao empreender estas nacionalizações?

Trino Márquez Sim. Este parece seu principal propósito. O Estado venezuelano controla a indústria petroleira, que é a indústria mais importante do país, assim como domina os principais setores básicos venezuelanos. Do total de divisas que entram na Venezuela, cerca de US$ 60 bilhões, o Estado é proprietário de ao menos US$ 52 bilhões. Ou seja, o governo não tem absolutamente nenhuma necessidade de reestatizar a empresa telefônica nem de nacionalizar a Electricidad de Caracas.

Parece-me que seu objetivo fundamental é o controle político das telecomunicações no país, assim como já controla totalmente a Assembléia Nacional, todo o sistema judiciário e o Conselho Nacional Eleitoral. Dos 24 governadores do país, 22 são chavistas, e dos 355 prefeitos, cerca de 280 são partidários de Chávez. Assim, é preciso entender que o controle da Cantv faz parte do plano de controle total da sociedade venezuelana.

Folha Online - E qual seria o resultado prático dessas estatizações?

Márquez
- A julgar pela experiência anterior, vai ser um caos. A Venezuela já teve a eletricidade controlada pelo Estado. As quedas de eletricidade eram constantes, amplos setores não tinham luz, e muitas empresas estrangeiras fechavam ou não vinham para a Venezuela por causa da má qualidade do serviço.

A Cantv também já foi uma empresa estatal, e durante um período muito prolongado funcionou muito mal. Era muito ineficiente, não se autorizavam as linhas telefônicas, a comunicação com os clientes era muito difícil, os telefones públicos eram muito escassos.

Os setores mais pobres, principalmente, se queixavam muito da indiferença da Cantv. Há relatos daquela época, há 20 ou 25 anos, que dizem que era preciso subornar os funcionários para conseguir os serviços. Este conjunto de problemas foi o que levou o governo a realizar a privatização desta empresa. E é exatamente isso que vai acontecer de novo se estatizarem as empresas.

Folha Online - Mas hoje a situação é bem diferente de 20 anos atrás, há outras tecnologias e o Estado tem dinheiro para investir...

Márquez
- Sim, temos mais tecnologias, não há dúvidas, mas também o volume de informação e de serviço demandado é infinitamente maior. A população da Venezuela dobrou (tem hoje 25,7 milhões de habitantes, aproximadamente). E este não é o único problema. A tecnologia requer pessoal altamente qualificado que a administre, e a experiência não só na Venezuela mas na maior parte da América Latina mostra que as empresas públicas são gerenciadas muitas vezes por pessoal escolhido por questões partidárias e não por merecimento.

Aqui, para se ocupar os altos cargos em qualquer setor do governo, é preciso ser chavista incondicional. É a única maneira de ocupar os cargos importantes. Se isso ocorre agora no governo, nos ministérios, nas administrações, imagine o que ocorrerá em empresas estatizadas?

Nos últimos 16 anos, a Cantv funciona muito bem, é lucrativa para seus acionistas e a qualidade do serviço melhorou muito. Mas isso parece que não agrada ao sr. Hugo Chávez. A estatização vai repetir os mesmo vícios de clientelismo que temos visto há anos na Venezuela.

Folha Online - E como o sr. vê o caminho para estas nacionalizações? Pensa que vão afetar outros setores também?

Márquez
- Parece que Chávez vai realizar uma escalada nas nacionalizações. Atualmente, cerca de 80% do PIB (Produto Interno Bruto) da Venezuela está ligado a atividades do Estado. Ele tenta reproduzir na Venezuela o modelo cubano que o atual chefe de governo de Cuba, Raul Castro [irmão de Fidel Castro, que entregou os poderes do país a Raúl em julho último devido a problemas de saúde] está tratando mudar. Enquanto Cuba tenta abrir um pouco a economia, a Venezuela faz o caminho inverso.

Estas nacionalizações fazem parte de um conjunto de medidas que pretendem incrementar a intervenção estatal na economia. Eu acredito que o governo de Chávez, que tem uma sólida popularidade por aqui, terá de tomar cuidado porque a atividade privada na Venezuela já é muito reduzida --ao contrário do que ocorre no Brasil.

Só temos presença privada realmente significativa na cadeia alimentícia, nas telecomunicações e no setor bancário. O ataque à Cantv permite pensar que o governo deverá nacionalizar também as outras empresas que operam nas telecomunicações.

Não sei se o governo optará por nacionalizar os bancos, como a experiência do Peru. Naquele país, durante o primeiro governo do atual presidente Alan García, houve privatizações no setor bancário e isso gerou um caos financeiro. Mas é muito preocupante a situação, já que Chávez anunciou também que pretende acabar com a autonomia do Banco Central venezuelano.

Folha Online - Chávez anunciou troca de ministros e auxiliares para essa nova gestão. Em seu ponto de vista, qual é a importância do nepotismo nestas escolhas, levando em conta Adan Chávez --irmão do presidente e novo ministro da Educação?

Márquez
- O nepotismo é importante, mas não é o principal problema da administração pública. Ele é relativamente secundário frente ao sectarismo. A Venezuela é hoje uma "ideocracia". O governo não se abre e não recorre aos distintos setores do país.

Não participam do governo setores profissionais independentes. O que há são militantes, ativistas incondicionais do presidente. Essa última troca de gabinetes, por exemplo, foi feita nomeando funcionários que não vêm dos setores que representam. Os 29 ministros que compõem o governo de Chávez não representam o país, representam Hugo Chávez. A visão de um governo como um órgão amplo, diverso, social, democrático, não existe aqui. O que há é um profundo sectarismo excludente.

Folha Online - E como o sr. compara esse corpo de ministros recém-empossado com os ministros que estavam no poder até 2006?

Márquez
- Veja, a mudança mais importante nem foi no caso dos ministros, mas do vice-presidente da República. E talvez também do Ministério do Interior. Da vice-Presidência, saiu José Vicente Rangel e entrou o sr. Jorge Rodríguez, que era o presidente do Conselho Nacional Eleitoral na época em que foi feito na Venezuela o referendo (2004) que confirmou Chávez no poder. Este senhor, que liderava o organismo arbitral das eleições, que se supunha independente, idôneo, neutro, hoje é o vice de Chávez. Esse corpo de ministros está aí para ajudar Chávez a implementar seu projeto de socialismo na Venezuela.

Folha Online - Que tipo de socialismo poderá ser implantado na Venezuela?

Márquez
- Apesar do que diz Chávez, seu projeto não é nada democrático.

Francesco Spotorno /Reuters
Chávez frente a painel com seu rosto em cerimônia em Caracas
Chávez frente a painel com seu rosto em cerimônia em Caracas
Não será implantado aqui um socialismo democrático ao estilo do que ocorre no Chile, ou mesmo nos países nórdicos.

A idéia aqui é um modelo muito parecido com o fidelista, cubano, de controle total das instituições. Absolutamente autocrático. E com um componente que nunca antes foi visto neste país, que é o culto à personalidade.

Na cerimônia de posse dos ministros, atrás da mesa em que estava Chávez, havia uma fotografia dele mesmo de 20 metros de altura. Nunca se viu antes o culto à personalidade típico de países totalitários como se vê hoje aqui. O que falta agora é pôr estátuas de Chávez pela cidade.

Vemos na venezuela uma autocracia que tem cada vez mais mina a democracia, a oposição, e o Estado de direito.

Folha Online - Na sua opinião, como essas novas medidas vão impactar as relações internacionais da Venezuela com seus parceiros da América Latina?

Márquez
- Vão impactar muito pouco, na verdade. Chávez insultou José Miguel Insulza, secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos) --chamando-o de "idiota", na última segunda-feira (8)--, e não houve reações importantes da comunidade internacional. Parece-me que essa indiferença da comunidade internacional frente a Chávez é devido ao poder da indústria petroleira. E Chávez tem um enorme poder para "comprar" essa indiferença por causa do petróleo da Venezuela. Chávez não apenas insulta líderes, mas se mete nas eleições e nos governos de vários países, como o Equador e a Bolívia. Aparentemente, seu projeto é continental.

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