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22/04/2007 - 02h30

A esquerda francesa em crise e a eleição presidencial

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ALAIN TOURAINE
especial para a Folha de S.Paulo

A campanha presidencial francesa não é dominada nem por um conflito entre os candidatos, nem por debates sobre os grandes problemas do país. Tudo é dominado pela crise do Partido Socialista e de toda a esquerda francesa. A esquerda francesa, de fato, é a única da Europa que mantém uma atitude de ruptura radical com o sistema econômico europeu e mundial. Essa atitude, que conduziu à vitória do "não" no referendo sobre a Europa, isola o Partido Socialista não apenas dos partidos social-democratas europeus, mas também, no próprio interior da França, o impede de propor uma política de governo, segundo uma tradição que data de Mitterrand ou de ainda antes. O caráter radical do discurso anda de par em par com a prudência ou até mesmo ausência de proposta política concreta.

E por essa razão que muitos eleitores de esquerda, especialmente aqueles que têm um nível de instrução acima da média, se distanciam do Partido Socialista e dão seu voto ao novo partido de centro criado por François Bayrou. Os professores estão entre os mais numerosos a ter descrito essa evolução em direção ao centro. Já o número de intelectuais que debandaram para a direita de Sarkozy é extremamente limitado.

A própria Ségolène Royal construiu sua candidatura e os grandes êxitos que obteve até agora em cima de sua disposição de romper com o Partido socialista no que diz respeito a seus programas irrealistas, seus problemas econômicos e sociais, mas também ao aceitar determinado número de valores tradicionais relativos ao trabalho, à segurança e até mesmo a identidade nacional, que são os temas reivindicados pela direita mas aos quais também uma parte da esquerda é sensível. Se Ségolène tivesse conseguido inverter a política do Partido Socialista por completo, ela provavelmente não teria tido concorrente importante no centro do espectro político. Mas seu sucesso é limitado, em vista do empobrecimento do Partido Socialista em termos de idéias e de efetivos e do aprofundamento das transformações que é necessário operar.

Assim, o tema do Estado e da identidade nacionais acabou sendo reivindicado por praticamente todos os candidatos importantes. É preciso acrescentar que a França que foi a principal construtora da Europa e que depositou muita confiança nesses grandes projetos hoje se sente decepcionada pelo fato de a Europa parecer estar dominada pelo espírito liberal dos ingleses e americanos. Sabe-se também que a posição da França, como membro permanente do Conselho de Segurança, levou o país a assumir a liderança da oposição contra a intervenção americana no Iraque. A opinião francesa, assim como a maioria das opiniões políticas européias, é muito largamente engajada nas opiniões hostis à intervenção americana e, inversamente, muito favorável à criação de um Estado palestino.

Sobre esses pontos, porém, Nicolas Sarkozy não está muito distante de sua concorrente. Após uma fase muito liberal no início de sua carreira e de uma visita desafortunada a Washington para celebrar as virtudes do presidente Bush, Sarkozy, dando-se conta das reações negativas provocadas por suas declarações e seus gestos, mudou profundamente de política e passou a apresentar-se mais como gaullista, mais como defensor do Estado nacional do que como fonte de apoio aos Estados Unidos e sua política econômica e militar no mundo.

Com respeito a todos esses pontos relativos à Europa, ao mundo, à economia e até mesmo aos grandes problemas sociais, a França não é muito diferente dos outros países europeus e até mesmo de alguns outros países de outras regiões do mundo. Repito que aquilo que é a especificidade francesa e que gerou a gravidade da crise política atual é a manutenção inteiramente artificial de uma extrema esquerda que rompeu qualquer relação com a realidade. A esse respeito, podemos comparar a França à Itália, onde a extrema esquerda de Bertinotti conduziu a direita ao poder uma vez e, estando hoje divida, é também um fator de enfraquecimento do governo de Prodi.

Creio que é preciso insistir sobre a profundidade dessa crise, que se deve ao fato de que a tradição social-democrata européia nunca se implantou na França, não mais que a tradição de uma direita liberal, e que a política francesa sempre conferiu uma vantagem nítida às políticas do Estado em relação às políticas da sociedade. Nesse contexto, os candidatos que representam os problemas sociais tradicionais, tendo em primeiro plano os do movimento operário, não costumam ter mais do que vitórias muito moderadas. O sucesso principal ainda é o de um candidato trotskista, Olivier Besancenot, que, como sempre, anunciou que no segundo turno não pedirá a seus eleitores que votem em Ségolène Royal --o que, entretanto, não impedirá muitos de seus eleitores de votarem nela.

Com essa exceção, os pequenos partidos de extrema esquerda, incluindo o movimento de opinião criado por José Bové, não reúnem mais que um número insignificante de votos. Depois de ter caído muito baixo, o Partido Comunista reconquistou um pouco de terreno, coisa que não aconteceu ao candidato do Partido Ecologista, já que esse partido é fraco demais para configurar-se como o melhor representante dos temas ecologistas, que, pelo contrário, assumiram uma importância dominante durante a campanha.

Será preciso que o novo presidente e a nova maioria parlamentar --pois as eleições legislativas vão suceder-se às eleições presidenciais em menos de um mês-- rapidamente apresentem novas propostas que sejam capazes de renovar ao mesmo tempo os objetivos econômicos, as políticas de redistribuição e, em particular, as políticas de impostos e as políticas de solidariedade através da seguridade social. Se --o que é uma hipótese que será preciso tomar em consideração-- Ségolène Royal perder a eleição, podemos prever uma verdadeira explosão ou até mesmo uma guerra interna entre os setores distintos do Partido socialista. Nesse caso ficará clara a dificuldade, mas também a necessidade de mudar de vocabulário e de modo de pensamento referencial na esquerda francesa, que, se não operar essa transformação, correrá grande risco de ver-se encerrada numa posição minoritária e pouco satisfatória, já que não se tratam, aqui, de interesses privados, mas de concepções de Estado distintas.

A interpretação que ofereci explica porque, na própria véspera da eleição, uma parte importante dos eleitores ainda não tenha tomado uma decisão definitiva quanto a seu voto. Trata-se essencialmente de eleitores que hesitam entre Ségolène Royal e François Bayrou, já que os votos neles dois são manifestações paralelas da crise do Partido Socialista. O ex-primeiro-ministro Michel Rocard publicou um artigo contundente indicando claramente aos eleitores socialistas que os eleitores não se equivocariam se votassem tanto em François Bayrou quanto em Ségolène Royal, declaração inteiramente infeliz feita às vésperas do primeiro escrutínio e que valeu a Michel Rocard críticas muito acirradas formuladas tanto por Ségolène Royal quanto por François Bayrou, que não podem ter certeza que tal posição venha a ter efeitos favoráveis para eles.

Eu, pelo contrário, acredito que a candidatura de François Bayrou, que teve uma recepção espetacular e inesperada, corresponde bem à ausência de confiança da população nos partidos e nos candidatos, tais como são. Mas podemos pensar que, quanto mais se aproxima o momento do voto, mais aumentam as incertezas em relação a François Bayrou: com quem ele vai governar?

Quem são os políticos, seja de direita ou de esquerda, que estão dispostos a apoiá-lo, e como ele se situa junto aos setores em que a esquerda normalmente deveria encontrar o maior número de eleitores? São perguntas que fazem pensar, no instante em que escrevo, que o segundo turno tem chance maior de opor Sarkozy a Ségolène Royal. Pelo menos é essa a opinião da maioria dos comentaristas e dos institutos de pesquisas.

Mas é preciso saber resistir à tentação de falar de uma eleição presidencial como se fala de uma corrida de cavalos. O que continua a ser essencial na França é muito menos a resistência de determinados setores da sociedade às reformas --necessárias, na medida em que os problemas têm grande importância--, e sim, antes de mais nada, a necessidade urgente de transformar o sistema político e, sobretudo, de oferecer aos eleitores de esquerda um programa e dirigentes que sejam capazes de exercer uma influência real e até mesmo de administrar o governo no mundo tal como ele é.

Tradução de CLARA ALLAIN

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