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Eu
estava em minha sala, na redação da sucursal da Folha, em Brasília.
Buscava um tema para esta coluna. De repente, o assunto salta diante
de mim. Ele me chega pela TV a cabo. Uma cena dramática, ao vivo,
em cores.
Fechada na lateral de um ônibus, a lente da câmera abre diante de meus olhos uma janela impensável. Revólver apontado para a boca, uma jovem entra em desespero. Segurando os cabelos de seu alvo com uma mão e a arma com a outra, um sujeito alto, boné, face parcialmente recoberta por uma camiseta, óculos escuros, dá início à contagem: "um, dois, três..."
Ouve-se a voz da repórter Vanessa Riche, que falava direto da rua Jardim Botânico, zona Sul do Rio: "Ele vai matar, ele vai matar". Do lado de fora do ônibus, três policiais militares tentam, sem sucesso, engatar um diálogo com o bandido. Gesticulam, vociferam. E nada.
Zapeando, descubro que a cena está disponível em outras emissoras, em diferentes ângulos. Estaciono na Globo. Em edição extraordinária, a Vênus Platinada se rende à anormalidade e injeta em Malhação, novelinha água-com-açúcar destinada a adolescentes, um naco da crua realidade.
Penso comigo: a miséria e a violência estão desvirtuando a lógica de funcionamento da Globo. Pobres e marginais já não cabem só no "Jornal Nacional". Eles estão como que transbordando para outros horários, manchando até mesmo o mundo idealizado das novelas.
O bandido anônimo fracassara na tentativa de assaltar os passageiros do ônibus. Mas, cercado pela polícia e pela mídia, consegue virar notícia. Antes excluído, ganha súbita existência. Uma existência eloqüente o bastante para mudar a grade de programação da Globo.
Antes de imiscuir-se em Malhação, o meliante já havia cavado fendas na Sessão da Tarde. Da janela do ônibus, ele gritava, em linguagem providencialmente cinematográfica: "Vocês pensam que isso aqui é um filme de ação? Não é não. Já perdi meu pai e minha mãe. Não tenho mais nada a perder. Mato todo mundo aqui. É bom me atender". Ele exige duas pistolas, duas granadas e mil reais.
O marginal leva jeito para as artes cênicas. Sabendo-se filmado, desfila com suas vítimas pelo corredor do ônibus. Ele as deixa apavoradas. Chega mesmo a simular um assassinato. Deita uma jovem no chão do veículo e aperta o gatilho. A repórter se apavora: "Ele matou a refém. Ele a matou." Qual nada. Era pura encenação.
Recebo da redação um informe que reforça o sucesso daquele figurante do mal: as cenas que me hipnotizavam haviam capturado também os olhos de FHC e de seu ministro da Justiça, José Gregori, arrancando-os da rotina modorrenta de uma Brasília ainda vazia, em início de semana.
O presidente até discou para o governador Garotinho, do Rio. E desceu à sala de entrevistas. Parecia decidido a disputar o estrelato com o bandido de nome desconhecido. À falta de coisa melhor para fazer, o presidente desfilou o seu mal-estar.
FHC enxergou, de resto, utilidade na violência. Tirando uma lasquinha do episódio, pregou a necessidade de uma ação conjunta de Brasília com os Estados. Como se sabe, o Planalto prepara plano de segurança cujo núcleo é justamente o trabalho conjunto.
Após quatro horas de suspense (o equivalente a duas fitas de cinema), o bandido deixa o ônibus. Leva consigo uma refém. Traz a arma apontada para a cabeça dela. O insolúvel estava, finalmente, próximo de seu desfecho.
Um policial, rosto encoberto, saído do nada, atira no bandido. Um final quase perfeito. O triunfo do bem sobre o mal só não foi completo porque, junto com o marginal, morreu uma refém.
Passado o "Jornal Nacional", o país, faminto de mentiras, entregou-se à fantasia de "Laços de Família", o dramalhão das oito. Saiu a crueldade cada vez mais próxima de Sérgio (a polícia não tem certeza, mas desconfia que é este o nome de nosso protagonista). E entrou a gostosura sempre inatingível de Vera Fisher.
A violência ainda ecoará no "Jornal da Globo", talvez no "Bom dia Brasil", quem sabe no "Jornal Hoje". Mas logo voltará à condição de assunto para teses acadêmicas, tema para projetos governamentais, matéria-prima para pautas de jornal.
Seremos todos devolvidos à anormalidade louca de nossa vida normal. Até a próxima explosão do ovo da jibóia.
Leia colunas anteriores
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30/05/2000 - Forças Armadas e (talvez)
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23/05/2000 - A locomotiva do atraso
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