Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrada

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Carlos Heitor Cony

Portas abertas

A boa tradição dos tribunais em tempos não virtuais obrigava que a justiça fosse feita de portas abertas

São muitos os que criticam a exasperação com a qual as sessões do STF sobre o mensalão estão se transformando num espetáculo midiático, criando heróis e vilões quase que no mesmo patamar das telenovelas. Creio que é a primeira vez que isso acontece em nossos anais judiciários, e há gente que condena tal e tamanha transparência.

Não se pode negar que a informação, em tempos digitais, não consegue evitar a espetacularização muitas vezes forçada, outras natural, como me parece ser o caso da ação penal 470. É possível até que a notoriedade das sessões tenha alguma influência no julgamento técnico dos eminentes ministros. Acredito que os advogados dos réus atribuam determinadas condenações e penas à exposição dos debates.

Pessoalmente, acho que a sociedade, em termos gerais, deve tomar conhecimento das dificuldades e desafios que os magistrados enfrentam para julgar e penalizar tantos delitos e tantos incriminados, num tipo de crime contra o bem público que horrorizou a todos nós, crime que sempre foi praticado impunemente ao longo da nossa história e da história da própria humanidade.

Nos anos 20 do século passado, a Alemanha regida pela constituição de Weimar evitou um julgamento público do líder nazista, Adolf Hitler, uma vez que o banco do réu seria uma tribuna formidável para a propaganda de suas ideias. E não havia televisão naquela época.

Em geral e, sobretudo, em regimes de exceção, os julgamentos de crimes, reais ou fabricados pelo próprio Estado, são julgados em tribunais também de exceção. O exemplo mais clássico que conheço é o de Robespierre.

Em questão de horas, passou de juiz a réu, foi preso por artes e traições do maquiavélico Fouché. "O Incorruptível" teve tempo até mesmo de dar um tiro no oficial que comandava a tropa que iria levá-lo para a guilhotina. O curioso é que este oficial se chamava Merda.

Se o debate na Convenção fosse divulgado por rádio ou televisão, ele poderia ter fugido -o que talvez explique a atitude do nosso procurador-geral, que pediu com antecedência os passaportes daqueles que já foram condenados.

A boa tradição dos tribunais em tempos não virtuais como o nosso obrigava que a justiça fosse feita de portas abertas. E aí eu contemplo o próprio umbigo para lembrar um fato que ocorreu comigo. Em setembro de 1964, respondendo a um processo contra a Lei de Segurança Nacional, cujo autor era o então ministro da Guerra, Artur da Costa e Silva, fui obrigado a estar presente quando aquela autoridade prestou seu depoimento como testemunha de acusação.

Uma prática daquele tempo isentava os ministros de comparecer aos tribunais, os tribunais é que iam ao ministro. Cumprindo aquela prática (não sei se ela foi abolida), o juiz foi ao gabinete do ministro, na praça da República, levando seus auxiliares diretos, inclusive um promotor, que por sinal tinha sido meu colega de CPOR.

Por sua vez, eu também fui intimado a ouvir de corpo presente a acusação que me era feita, tendo direito apenas a levar o meu advogado, que era um penalista famoso, Nelson Hungria, muito citado atualmente no julgamento do mensalão.

Sentados, somente eu tive o direito de ficar em pé para ouvir as acusações do Estado contra a minha atuação como jornalista. Antes de abrir a sessão, o juiz (Gama Malcher) cochichou com o ministro que estava ao seu lado. A justiça, disse o magistrado, devia ser feita de "portas abertas", e o enorme gabinete de Sua Excelência estava com sua porta principal fechada.

Costa e Silva se levantou, e mesmo podendo pedir a um dos oficiais que lhe davam guarda para cumprir a tarefa, foi ele próprio abrir a imensa porta que estava meio emperrada, uma vez que só era aberta em condições especiais.

Um dos oficiais era o então coronel Mário Andreazza, mais tarde ministro. Vendo o seu superior em dificuldade para destrancar a porta, tentou ajudá-lo, mas foi repelido pelo dono do gabinete, que teve até de se ajoelhar para puxar a pesada tranca que fechava a porta pelo lado de baixo.

Cumpria-se a norma da justiça a portas abertas. Com o rosto afogueado pelo esforço, o ministro perguntou ao juiz se estava tudo nos conformes. Estava.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página