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Crítica Drama
Moralismo poderia ter sido evitado em longa com bons achados
INÁCIO ARAUJO CRÍTICO DA FOLHA"O Voo" retoma uma velha saga do cinema americano: a dos homens destruídos pela bebida -que já nos deu "Farrapo Humano", 1945, e "Vício Maldito", 1962, para ficar com dois bons exemplos de filmes do Oscar.
Mas o tempo é outro, e o roteiro de "O Voo" trata de atualizá-la de forma oportuna.
O primeiro, mais óbvio, consiste em acrescentar o uso de drogas ao alcoolismo. O segundo, belo achado, em atribuir esses vícios todos a Whip Whitaker, piloto de jatos comerciais.
Aliás, Whip não só pilota como é dotado de uma capacidade profissional incrível, de que aliás fará uso no primeiro e catastrófico voo do filme, do qual consegue safar-se, com apenas seis mortos, entre os mais de cem passageiros e tripulantes, graças ao seu talento.
Como, no entanto, há mortos no acidente, a investigação será profunda, o que permitirá ao roteiro armar uma espécie de interessante xadrez: o comandante não é culpado pelo que aconteceu; sabe-se, ao contrário, que salvou vidas e tal. Mas tudo isso pode virar só um blá-blá-blá se a comissão descobrir álcool e cocaína em seu sangue.
Cá entre nós, isso não é nada difícil. Mas o sindicato dos aeronautas tem um bom advogado. Isso muda muita coisa.
A questão é que, daí por diante, tudo depende de Whip: conseguirá, primeiro, admitir que é alcoólatra (e não que bebe porque gosta, como alega)? Conseguirá aderir a um programa de reabilitação?
O fato é que estamos em um filme de bêbado. Todos torcem por ele -é um gênio da aviação, é um bom sujeito, é Denzel Washington-, menos ele. Conseguirá vencer a bebida? E a que custo?
Dadas essas premissas, a primeira coisa a dizer é que "O Voo" consegue sustentar o interesse do espectador do começo ao fim. Mesmo as subtramas, referentes à ex-mulher e à namorada atual, servem ao filme.
Mas algo bate errado em "O Voo", além do avião e do alcoolismo. Disso não se pode falar demais, sob pena de estragar o prazer do espectador. Pode-se em todo caso dizer que o final extremamente moralista poderia ser, muito bem, evitado.
Ele não se apoia em nenhuma premissa lógica, nada sólido em todo caso, que justifique a mudança de comportamento de Whip.
O final deixa de lado qualquer relação com o acidente (tecnicamente falando) para buscar motivos externos que dizem respeito a um último tema do filme: a obsessão americana pela verdade.
É o que o epílogo confirmará, quando nos vemos diante de algo que mais parece uma peroração de pastor subevangélico. Tal como o alcoolismo, Hollywood cobra um preço.
Em tempo: Denzel também concorre ao Oscar. Não deve vencer, mas está ótimo.