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As cidades em processo

A bienal é de urbanismo

GUILHERME WISNIK ANA LUIZA NOBRE LIGIA NOBRE

RESUMO Os curadores da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo expõem os eixos de seu trabalho, que se volta mais a questões das metrópoles atuais do que a seus edifícios. As cidades, pós-crise financeira e protestos, restabelecem-se como espaços a serem vividos, não consumidos, e como palco de realização de desejos.

As cidades estão hoje no centro da discussão mundial. O planeta se urbanizou de forma rápida e avassaladora, as metrópoles incharam, tornaram-se infinitamente mais complexas, e a ciência responsável por refletir sobre esses processos e regrar seu crescimento --o urbanismo-- entrou em colapso. Por onde seguir?

Desacreditado o modelo ocidental para o desenvolvimento urbano após a crise financeira de 2008, cidades que cresceram em meio a crises sistêmicas e fora do centro, tais como São Paulo, Rio de Janeiro, Lagos e Shenzhen, entre outras, assumiram relevância em função dos problemas e das complexidades para os quais apontam.

Se nos anos 1990 vivíamos uma espécie de fatalismo, segundo o qual as cidades pareciam não ter alternativa a não ser entregar-se inteiramente ao capital financeiro e globalizado, temendo sempre o risco-país, hoje as experiências bem-sucedidas (ainda que contraditórias) de cidades como Medellín, na Colômbia, somadas à força contestatória dos vários "occupy" pelo mundo, demonstram que os centros urbanos não podem ser apenas "máquinas de produzir riqueza", segundo a definição dos sociólogos Harvey Molotch e John Logan em "Urban Fortunes".

Ocorre que o próprio lugar do Brasil como país emergente também já está posto em dúvida e, como sabemos, o otimismo acrítico frente ao futuro de nossas cidades diante dos megaeventos que se aproximam foi definitivamente rompido pela "voz das ruas".

É sobretudo em momentos como este, de crise, que se apresenta a chance de mudar as coisas. É nessa fenda que a 10ª Bienal de Arquitetura pretende inserir as suas discussões, pondo o foco mais sobre a cidade do que sobre o edifício. Com o título "Cidade: Modos de Fazer, Modos de Usar", propusemos instalar a Bienal no espaço urbano, em uma rede de lugares conectados ao sistema de transporte público de São Paulo, com destaque para o metrô e o trem.

Em uma mostra de arquitetura, não estamos diante das próprias obras, como em uma exposição de pintura, e sim de representações delas. Além disso, com a internet, é possível conhecer rapidamente, e a fundo, projetos que aparecem aqui e no exterior. Que caráter dar, então, a uma Bienal de Arquitetura nesse contexto? E mais: a uma Bienal sediada em São Paulo?

Para nós, como curadores, pareceu evidente que o melhor seria proporcionar uma experiência da própria cidade. Uma cidade jovem, se comparada à tradição europeia, que se tornou uma metrópole pujante, que cresce exposta a processos de violenta desigualdade.

Cruzar a cidade de metrô para ver a Bienal pode se tornar uma espécie de deriva. Visitar uma exposição sobre o High Line nova-iorquino em um apartamento em frente ao Minhocão será uma experiência "site specific" que só uma exposição assim pode promover.

Significativamente, destacam-se entre os espaços da 10ª Bienal dois dos edifícios mais bem-sucedidos da cidade, quanto à relação entre projeto e uso: o Sesc Pompeia e o Centro Cultural São Paulo.

Projetados por Lina Bo Bardi, no primeiro caso, e por Eurico Prado Lopes e Luiz Teles, no segundo, ambos os prédios têm ruas internas e são abertos à cidade, permanecendo vivos a qualquer hora, já que frequentados por pessoas de diversas idades e classes sociais, que deles se apropriam para estudar, jogar cartas, xadrez, dançar, praticar exercícios, relaxar e até mesmo dormir e tomar banho.

Os dois edifícios, inaugurados em 1982, ainda têm em comum o fato de que guardam certo ar de indeterminação, como se estivessem permanentemente em obras, evocando um aspecto frequente nas cidades contemporâneas.

PARADIGMAS O que move a contínua construção e reconstrução das metrópoles atuais? De que forma estamos envolvidos na consolidação da cidadania e de uma desejada esfera pública no espaço urbano? Que modelos seguir em um momento de quebra de paradigmas globais? Ainda que não sejam passíveis de respostas objetivas, perguntas como essas animaram nossa investigação, centrada menos nos projetos de futuro das grandes cidades-capitais do mundo e mais nos processos por trás desses projetos e obras.

Esse norte aparecerá, por exemplo, em uma exposição que procura mostrar o quanto a face reconhecível de São Paulo é desenhada pela legislação urbana --mais do que pela mão do arquiteto.

Outro caso interessante, nesse sentido, é a exposição que chamamos de "Brasil: o Espetáculo do Crescimento" em alusão à expressão usada em 2003 pelo então presidente Lula ao anunciar a previsão de crescimento do país nos anos seguintes. Por meio de uma viagem de pesquisa a Pernambuco e ao Pará, buscamos localizar as cidades que mais cresceram nos últimos dez anos, com a combinação entre agronegócio, mineração e grandes obras estatais de infraestrutura, tais como usinas, portos, ferrovias e os conjuntos do programa Minha Casa, Minha Vida.

Espetáculo do crescimento, ou crescimento do espetáculo? Vivemos uma espécie de segunda rodada do "Bye-bye Brasil" dos anos 1970. Nossa intenção foi localizar como se refletem, no ponto de vista urbano, as questões que lemos nos cadernos de política, economia ou agrícola dos jornais.

Assim, tanto quanto abordar a lógica de transformação das cidades médias, nos interessou pôr em foco a hibridização crescente entre cidade, subúrbio e campo.

O que o arquiteto Rem Koolhaas chamou de "cidade genérica" nos anos 1990 pode ser relido hoje em relação com o que o geógrafo português Álvaro Domingues qualifica como "paisagem transgênica": ambos falam de um antigo mundo do campo colonizado pela infraestrutura técnica da circulação e pela banalidade do consumo.

EXCITAÇÃO Com efeito, vive-se hoje uma certa excitação com o novo protagonismo das cidades no mundo desenhado pela economia de serviços, espelhando um contexto em que cidades pelo mundo desmontam ou reciclam vias expressas elevadas para construir parques e abrigar atividades de lazer na escala do pedestre.

Hoje, apesar da macroeconomia mundial seguir dominada pelo petróleo e de os subsídios à produção e consumo de carros se manterem como motor da economia de países como o Brasil, mudanças culturais fazem com que, mesmo nos EUA, muitos jovens já não vejam o automóvel como signo primordial de inserção na vida urbana, substituindo-o, enquanto objeto de desejo, por gadgets eletrônicos.

Por que Detroit, a cidade-sede da indústria automobilística definha, tendo muitos dos seus quarteirões tomados pela agricultura de subsistência, e países como China e Angola constroem cidades inteiras que permanecem vazias?

Questionado sobre seu possível arrependimento por ter comprado imóveis no distrito-fantasma de Kangbashi, em Ordos, na Mongólia Interior, um investidor de Pequim respondeu: "Não fiz um mau negócio. Investi em uma cidade que não está sendo gasta". É uma observação que soa curiosa, mas, com a vertiginosa ancoragem do capital financeiro na especulação imobiliária, parece que chegamos ao paroxismo de cidades sem valor de uso, com puro valor de troca.

Mas nem tudo, hoje, se mostra esvaziado como Ordos ou Detroit.

A efervescência humana que tomou os espaços públicos de Nova York durante o Occupy Wall Street, em 2011, assim como ocorreria em Istambul e em muitas cidades brasileiras mais recentemente, nos devolve à vitalidade do uso como valor principal da vida urbana.

Fica evidente que o espaço público deixou de ser o lugar apaziguado do encontro para tornar-se palco do conflito, do atrito. É na esfera pública que as diferenças, inerentes à vida nas cidades, são negociadas. Ocupar, tensionar, protestar e resistir são hoje ações vitais nos centros urbanos, mostrando que as práticas sociais ligadas à apropriação do espaço público podem se contrapor de forma relevante à especulação imobiliária, ao consumismo e à predominância dos interesses privados.

"Fazer" e "usar" a cidade pareciam compor, até pouco tempo, um par dicotômico, que aludia, de um lado, às forças políticas e econômicas que constroem a cidade junto ao desenho do arquiteto e, de outro, ao uso dos espaços urbanos pela população.

Está claro, porém, que esses polos não mais se separam, pois usar é fazer e vice-versa, e sabemos que não daremos conta da complexidade crescente das cidades sem arquitetarmos seus fazeres e usos de maneira dialógica.

Muitas dessas questões retornam a partir do arco de problemas levantados de forma experimental nos anos 1960 e 1970.

Entre elas estão o papel ativo conferido ao uso das cidades e à emergência de práticas colaborativas que ensejam redes horizontais de ação no mundo contemporâneo. De alguma forma, as experiências coletivas trazidas à tona pelos grupos que fizeram a grande crítica ao urbanismo moderno, como o Team X e os situacionistas, se atualiza hoje na ação de coletivos jovens como o Supersudaca (América Latina), o Al Borde (Equador) ou o Crit Studio (Índia), que vêm para a Bienal.

O "direito à cidade", "motto" do sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre (1901-91) está, de novo, na ordem do dia, pois o cidadão que usa o espaço urbano reivindica o direito de participar ativamente de sua construção. Esse direito inclui não apenas a satisfação de necessidades básicas, como transporte, habitação, saúde e educação, mas também a realização de desejos --sobretudo o desejo, múltiplo e difuso, de cidades melhores para a ação cotidiana.


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