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Iêmen faz sua revolução 'em fogo baixo'
País, um dos mais pobres do mundo árabe, institui diálogo nacional e, por ora, escapa de violência como a do Egito
Grupo insurgente xiita e separatistas do sul são os maiores desafios dos iemenitas, que em 2012 derrubaram seu ditador
Enquanto a Primavera Árabe parece ter sido ameaçada por um golpe militar no Egito e levado à morte de dezenas de milhares na Síria, a revolução política no Iêmen está sendo preparada aos poucos. "Em fogo baixo", diz a jornalista local Nadia Sarkaf.
Esse país miserável, que costuma ser notícia por abrigar a franquia mais violenta da Al Qaeda, pode vir a servir de exemplo às demais nações árabes por realizar há meses um diálogo pacífico para traçar o futuro pós-ditadura.
Dezenas de integrantes de diversos setores da sociedade --como Sarkaf, representando as mulheres-- se reúnem diariamente em um hotel de luxo da capital Sanaa para discutir ponto a ponto como será o novo governo.
O chamado Diálogo Nacional começou em março e deve durar aproximadamente seis meses, culminando em recomendações para uma Constituição, destrinchando questões-chave como a segurança nacional e o separatismo de Áden, ao sul do país.
"A versão iemenita da Primavera Árabe é surpreendente. Desenvolvemos nossa maturidade", afirma Sarkaf.
Ela nota que uma das razões para o caráter até agora pacífico da transição política é o fato de a comunidade internacional estar unida em relação ao Iêmen, ao contrário do visto na Síria, que tem polarizado Rússia e EUA.
O Diálogo Nacional iemenita é apoiado pela ONU e pelos países do Golfo, após o acordo político que retirou o ex-ditador Ali Abdullah Saleh do governo em 2012 e levou ao poder o vice Abd al Rab Mansur al-Hadi.
VIOLÊNCIA
Assim como Sarkaf, Munir Mawari, membro do comitê de Justiça do Diálogo Nacional, diz ter sido surpreendido pelo desenvolvimento político pós-revolução no país.
"Pensei que seria violento, como de costume", diz. "Há armas em todos os cantos. O cenário iemenita é pior do que o sírio nesse sentido."
Mawari afirma que, hoje, a questão mais problemática é a participação política dos huthis, grupo insurgente xiita do norte do país que prega "morte aos EUA".
"Eles são mais perigosos do que os separatistas do sul", diz Mawari.
Ali al-Imad, relações públicas dos huthis, rebate: "Queremos liberdade para as pessoas. É o nosso direito, já que não usamos as nossas armas na revolução. Não queremos mais a intervenção dos EUA".
O grupo, hoje isolado do poder, negocia agora sua participação política e pede que suas milícias sejam incluídas nas forças de segurança.
Para Fuad al-Hudhaifi, membro da comissão de jovens, "o diálogo é a última chance de salvar o país, criando um novo governo baseado na democracia".
Mas há ainda uma série de entraves políticos para o sucesso da empreitada. Durante a semana em que a Folha acompanhou os debates, por exemplo, as delegações huthis e as ligadas ao antigo regime ameaçaram diversas vezes abandonar a iniciativa.
Os representantes do movimento separatista do sul, por sua vez, carecem de base política para as negociações --a liderança em Áden, capital do antigo Iêmen do Sul, não reconhece o diálogo.
Abdallah Hassan Nakhbi, que representa o sul na iniciativa, tenta convencer o governo central a estabelecer duas federações com capitais separadas. Mas, mesmo se for aceita, a proposta não deve ser bem recebida no sul.
Outro impasse será, segundo Hafez al-Bukari, a opinião pública. Presidente de uma entidade de pesquisa no país, ele nota que a população já não está interessada no tema.
"O teto de expectativa das pessoas é baixo. Querem eletricidade, água e segurança."
Ele afirma que os problemas no país não estão necessariamente atrelados a um sistema político problemático. "Nós temos uma Constituição. A questão é que ela não é implementada."
"O Diálogo Nacional está estabelecendo uma referência legal e teórica de que não precisamos", afirma Bukari.