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05/08/2012 - 02h30

Rodoanel cortará fazenda de agricultores portugueses na zona norte

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VANESSA CORREA
DE SÃO PAULO

Enquanto lava em uma antiga banheira de ferro o gengibre recém-colhido, Neide Ferreira Lopes, 59, passa a vida a limpo. Filha de imigrantes de Ribeira da Janela, um vilarejo de agricultores na Ilha da Madeira, ela trabalha desde moça nas mesmas terras. "Nasci logo ali, numa casa de pau a pique", aponta. Neide nasceu logo ali mesmo, no Tucuruvi, zona norte de São Paulo.

Christian von Ameln/Folhapress
A agricultora Neide Ferreira Lopes, 59, volta da roça com caixa de gengibres; ela também nasceu na fazenda Santa Maria
A agricultora Neide Ferreira Lopes, 59, volta da roça com caixa de gengibres; ela também nasceu na fazenda Santa Maria

A fazenda Santa Maria fica a apenas 12 quilômetros do Marco Zero. Propriedade da família Alcântara Machado -tradicional a ponto de ter, ela própria, cunhado o termo "quatrocentão"-, a região é a morada e o sustento de cerca de 200 filhos e netos de portugueses.

Gente que, há três gerações, só conhece a lavoura como forma de vida. Sem contato com o "asfalto" -como eles chamam a metrópole que está fora da roça-, o grupo ainda conserva o sotaque de Portugal. O sossego secular ao pé da serra da Cantareira foi rompido quando técnicos da Dersa (empresa que cuida de estradas) passaram a sondar os arredores e fazer medições.

Assim que se aproximaram da chácara dos Candelária, no meio do ano passado, o clã desconfiou do que se confirmaria mais tarde: a fazenda será cortada ao meio pelo trecho norte do Rodoanel, obra do governo estadual que pretende desafogar o trânsito da marginal Tietê.

Christian von Ameln/Folhapress
Manoel Candelária, 80, teme ter de deixar a fazenda Santa Maria,onde nasceu e cultiva a terra a mais de 60 anos
Manoel Candelária, 80, teme ter de deixar a fazenda Santa Maria,onde nasceu e cultiva a terra a mais de 60 anos

"A gente está aqui há tantos anos. Fico com dó da chácara." A fala embargada é do patriarca Manoel Candelária, 80, morador da Santa Maria desde que nasceu. Entre seus sete filhos, seis também não conhecem outra vida. A Maria, 52, cabe o trabalho de casa. Já Manoel Júnior, 53, Rosa, 50, Conceição, 49, Matilde, 45, e Lucinda, 34, dedicam-se ao cultivo e à colheita de 2.000 caixas de chuchu e de gengibre por ano.

Solteiras -a vizinhança diz que o pai delas é muito bravo-, as mulheres têm apenas o domingo para descansar, quando vão à missa e fazem compras. A rotina noturna com banho de chuveiro e TV chegaria em 1995, época em que seu Manoel puxou a eletricidade "do mato lá de cima". Passados 17 anos, ainda não chegam à fazenda contas de luz nem serviços como água, esgoto e correio.

Estrada 'engenhada'

Enquanto uma parte das famílias aguarda informações, outra já está certa de que será removida -apesar de ainda não ter recebido avisos oficiais. Em comum, há o temor de acabar em um conjunto habitacional, sem poder exercer a agricultura.

"Isso aqui é que é bom de trabalhar. Ao ar livre. Agora mesmo eu ia semear um coentro", diz a portuguesa Maria Conceição dos Santos, 68.
Casada por procuração ainda na Ilha da Madeira, ela chegou à fazenda Santa Maria aos 29 anos. Desde então, ouve dizer que há uma estrada planejada para a região.

Ficou sabendo dos boatos assim que conheceu o marido. Ele logo contou a Conceição do episódio em que subiu no alto da serra com os irmãos do antigo proprietário das terras. "Chegando lá em cima, na junção, eles [os donos] falaram: 'Pode demorar 20, 30 anos, mas vai passar uma estrada aqui'. Já
está engenhada há muito tempo."

A ideia de uma via circundando a capital vem dos anos 1920 -o esboço acabou resultando nas marginais Tietê e Pinheiros. Já o primeiro traçado do Rodoanel é de 1992, ainda com o trecho norte passando por trás da serra da Cantareira. O desenho atual, que corta a fazenda Santa Maria, foi elaborado em 1998.

Arrendatários, de uns anos para cá os colonos estão pagando aluguéis que giram em torno de R$ 100 mensais. Como outros moradores da fazenda, Conceição acredita não ter direito à propriedade do lote onde mora. "Só trabalhei [na terra]. Plantei, cultivei, deixei limpa."

Apesar da ameaça de ter de deixar a lavoura, com ela não há tempo ruim. "Eles [os governantes] vão saber do tempo que a gente está na roça, vão saber de tudo.
Mas, se nos deixarem no caminho do conselho [a rua], aí vamos andando para baixo e para cima, vamos passeando", diz, rindo. Questionada sobre o que espera receber do governo, a agricultora faz pouco. "O que é que eu vou te dire [sic]? Eles é que vejam."

Destino

A Dersa afirma que o cadastro das famílias começará ainda neste mês e será concluído até o final do ano. Só quando a licitação da obra terminar, o que deve coincidir com o fim do cadastramento, é que as desapropriações serão iniciadas.

Os moradores da fazenda estão numa espécie de limbo indenizatório por não se enquadrarem claramente em nenhuma das duas categorias possíveis: desapropriação e reassentamento. Na primeira, o proprietário deve receber o valor de mercado do imóvel. Na segunda, a família é indenizada pela casa que construiu em ocupação irregular ou é reassentada em apartamento da CDHU quitado. A Dersa não esclareceu qual delas será utilizada no caso Santa Maria.

A Defensoria Pública vem orientando os moradores sobre como encarar o que está por vir. O órgão estima que haja cerca de 300 famílias no local, o que inclui também as de origem japonesa e os moradores mais recentes, não agricultores.

Só na colônia portuguesa são 50 famílias, nas contas de Maria de Fátima Gomes Baltazar, 57, representante dos moradores na Defensoria. Nascida em uma casa de madeira, ela se dedica a catequizar as crianças da fazenda. Ela e seu irmão, agricultor, nunca tentaram obter usucapião da terra "em respeito" aos Alcântara Machado. "A gente brincava com as filhas da Sinhazinha. Ela era humilde. Mandava as empregadas servirem bolo e biscoito, coisa que a gente não conhecia."

Fátima diz que não espera grandes indenizações e que gostaria mesmo é de ficar na Santa Maria. "A fazenda é muito grande." A área, de 1,7 km2, equivale ao parque Ibirapuera.

Calça curta

Depois de conversar com os moradores, a sãopaulo procurou o advogado Antônio Rudge de Alcântara Machado, 76. Ele é um dos atuais donos da Santa Maria e neto de José de Alcântara Machado de Oliveira (1875-1941). Jurista, político e escritor, José proferiu, em sua posse na Academia Brasileira de Letras, a frase que deu origem ao termo "quatrocentão": "Paulistano sou, há quatrocentos anos".

O advogado afirma que seu desejo é "tentar realocar" as famílias dentro da própria fazenda Santa Maria. Ele guarda boas lembranças do lugar: quando criança, costumava brincar com os filhos dos portugueses. "Tem senhores que me conheceram de calça curta, me chamam de Toninho. Há laços afetivos."

 

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