Tilápia avança na Amazônia e gera preocupação sobre impacto ambiental

No Peru, espécie de origem africana dizimou fauna de lagoa; MT e TO autorizam criação em lagos de hidrelétricas

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Sauce (Peru)

No ceviche, nas águas da turística Lagoa Azul, no mercado ou em tanques escavados, a tilápia faz parte da vida de Sauce, povoado amazônico ao pé dos Andes peruanos, já há três décadas. Mas a introdução da espécie africana diminuiu a diversidade da fauna aquática e tem servido de argumento aos que se opõem à criação de peixes exóticos na Amazônia, um debate que divide estados no Brasil.

“Quando era criança, havia tanto acará na lagoa que eles pulavam dentro da canoa, mas parece que a tilápia comeu tudo”, diz a dona de restaurante Dalia Rengijo, 64. Apesar isso, ela defende a criação do peixe exótico, o único oferecido no seu cardápio: “É um alimento para o povo e para o comércio também.”

Introduzido sem licença na região, a tilápia é vendida a cerca de R$ 16/quilo, um preço acessível. No mercado, as outras espécies à venda são trazidas de longe depois terem praticamente sumido do lago. O peixe exótico é também o único oferecido no luxuoso resort local, onde o pirarucu aparece apenas em um quadro do restaurante.

Moradoras de Sauce (Peru) conversam diante de tilápia à venda. - Fabiano Maisonnave/Folhapress

Assim como no Peru, onde a criação de tilápia está proibida na maior parte da Amazônia, o tema é motivo de controvérsia no lado brasileiro da floresta. No Amazonas e no Pará, iniciativas para liberar foram barradas, mas, no ano passado, Tocantins e Mato Grosso, tornaram-se os primeiros estados da Amazônia a autorizar a criação da espécie em tanques-rede dentro de lagos de usinas hidrelétricas.

Em Rondônia, o maior produtor de peixe nativo do país, a produção de peixes exóticos está proibida, mas uma pesquisa em andamento da Universidade Federal de Rondônia (Unir) tem encontrado tilápia em ambientes naturais. 

No Amazonas, mesmo proibida, a tilápia também foi introduzida ilegalmente na região de Manaus e em outros ambientes naturais, adverte  Guillermo Estupiñán, especialista em recursos pesqueiros da ONG WCS Brasil. “Mas não temos informações da sua situação atual e dos seus impactos na escala que se encontram. Precisamos gerar conhecimento sobre o tema, urgentemente.”

Introduzir tilápia na Amazônia é má ideia, adverte o governador da região (estado) de San Martín, Pedro Bogarín. “É impossível controlar. A tilápia é tão maldita que não sei se voa ou vai por debaixo da terra, mas é encontrada fora dos tanques. Encontramos tilápias grandes nos rios e, para chegar a esse tamanho, comeram ovas de outros peixes. É um erro gravíssimo que estão cometendo”, disse à Folha

Entre os impactos da lagoa, uma das principais atrações turísticas da região, Bogarín cita o desaparecimento de uma concha rosada, antes usada para artesanato, e uma grande mortandade de tilápias no ano passado, provocada por um vírus até então inédito na região.

“Vou escrever ao governador [do Amazonas] para que não caia na tentação. São tantos peixes amazônicos para criar”, diz Bogarín, que também é piscicultor, especializado em pirarucu. Para este ano, diz, ele pretende soltar alevinos de peixes amazônicos em cursos d’água onde a presença de tilápia é maior para tentar mitigar o impacto.

A preocupação é compartilhada pelo biólogo Hernán Ortega, da Universidad de San Marcos e um dos principais especialistas peruanos sobre o assunto. Ele afirma que medidas como o uso de tanques de rede e a reversão sexual (para impedir a reprodução) são insuficientes e adverte contra planos do governo peruano para incentivar a tilápia em outras áreas da Amazônia do país.

“Seria a mais séria ameaça para a diversidade de peixes, porque a tilápia do Nilo estaria livre para dominar as lagoas e rios de corrente fraca”, afirma Ortega, responsável por uma coleção de peixes de água doce peruanos com 650 mil exemplares de 1.100 espécies.

A entrevista com Bogarín foi realizada durante a Conferência do Bom Crescimento, organizada pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que reuniu cerca de 300 representantes de governo nacionais e regiomais, de organismos multilaterais e de ONGs para discutir práticas agrícolas conciliadas à preservação ambiental.

Um dos presentes, o presidente da Naturatins (Instituto Natureza do Tocantins), Marcelo Soares, participou do processo de licenciamento da tilápia em tanques-rede, que, conta, levou nove anos até ser aprovado pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Coema).

Soares afirma as exigências são rígidas e incluem reversão sexual, um formato específico de tanque-rede e um estudo prévio sobre o local onde será montado o empreendimento. “A licença ambiental só será emitida quando estiver comprovado de que não há risco”, diz o presidente do órgão responsável por esse trabalho.

Segundo ele, o processo ocorreu por causa da pressão de empresas estrangeiras em produzir tilápia, principalmente no lago formado após a construçao de usina hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães. A ideia é de que boa parte produção seja para exportação. Até agora, nenhum empreedimento está em funcionamento.

Peixe de retorno rápido e de fácil reprodução, a tilápia é, de longe, o principal produto da piscicultura brasileira. No ano passado, chegou a 400,2 mil toneladas, um crescimento  de 11,9% em relação a 2017. O volume representa 55,4% dos peixes de cultivo produzidos no Brasil _o principal estado produtor é o Paraná. 

Por outro lado, a produção de peixes nativos caiu 4,8% no ano passado, com 287,9 mil toneladas. Todos os cinco maiores produtores estão na Amazônia Legal (RR, MT, MA, PA e RR). Os dados são do Anuário 2019 da Associação Brasileira da Pisicultura (Peixe BR).

 

Embrapa

Apesar de conduzir várias pesquisas sobre piscicultura na Amazônia, a Embrapa ainda não tem uma posição sobre a tilápia, na região, explica a Eric Routledge, chefe adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da unidade de Palmas, especializada em Pesca e Aquicultura.

O pesquisador lembra que o tambaqui, de origem amazônica, ó peixe nativo mais produzido no Brasil, mas ressalva que “os produtores de peixes nativos ainda não dispõem de tecnologias que possam tornar a atividade competitiva frente a outras espécies de peixes. A Embrapa tem, em sua carteira de projetos, ações que pretendem em médio prazo superar esses desafios.”

Na avaliação de Estupiñan, mesmo que o ambiente aquático sofra com ameaças maiores, a tilápia não pode ser ignorada: “Os principais impactos para a pesca são a degradação de paisagens aquáticas, projetos de infraestrutura e da indústria extrativa, mas a introdução de espécies exóticas, não apenas de peixes, agrega poder a uma degradação lenta e talvez invisível da Amazônia”.

O repórter Fabiano Maisonnave viajou à Amazônia peruana a convite do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

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