Descrição de chapéu pantanal

Queimadas em Mato Grosso põem em risco espécies de primatas já ameaçadas

Situação no entorno do Parque Indígena do Xingu é calamitosa, segundo pesquisador

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São Carlos (SP)

A onda de queimadas que assola o país, além de causar os piores incêndios já registrados no Pantanal, está causando estragos severos na zona de transição entre a Amazônia e o cerrado, área naturalmente mais seca e cada vez mais vulnerável às mudanças climáticas. Espécies ameaçadas de primatas, como o macaco-aranha-de-cara-branca (Ateles marginatus), já foram vistas fugindo da mata em chamas.

“A situação no entorno do Parque Indígena do Xingu, em especial no interflúvio [região entre rios] Teles Pires-Xingu, está calamitosa”, diz Gustavo Canale, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso e atual presidente da Sociedade Brasileira de Primatologia. “Tivemos uma leve melhorada por causa de algumas pancadas de chuva, mas a verdade é que o Arco do Desmatamento está inteiro incendiando. Chegamos a ficar cinco dias sem ver o Sol.”

Rio Teles Pires, que banha os estado de MT e PA, assolado pelas queimadas em 2020
Rio Teles Pires, que banha os estado de MT e PA, assolado pelas queimadas em 2020 - Arlindo de Paula Machado Neto

As idas a campo realizadas por Canale e seus colegas no município de Sinop (MT) mostraram que, embora as árvores mais altas ainda estejam de pé, os incêndios transformaram grandes áreas do sub-bosque (as camadas mais baixas da vegetação) em terra arrasada. “Você anda pelas trilhas por dois, três quilômetros e vê que o fogo entrou pro dentro do sub-bosque queimando tudo”, conta ele.

Segundo o biólogo, é possível sentir cheiro de carne queimada dentro da floresta, e moradores relatam ter visto animais mortos pelo fogo.

“Mas a maior preocupação é a alta probabilidade de fome para muitas dessas espécies nos próximos meses. Temos uma grande diversidade de primatas na região, por exemplo, e eles podem até ter se refugiado no dossel [as árvores mais altas da mata], mas são bichos que procuram alimento numa área bem mais ampla, que começa no chão da mata, capturando pequenos animais, ovos de passarinho, frutos etc. Boa parte disso foi embora.” A equipe teve até de auxiliar um assentamento do município, cheio de construções de madeira, para controlar o fogo que estava se aproximando do local.

Com o apoio do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (ligado ao Instituto Chico Mendes) e da GWC (Conservação Global da Vida Selvagem, na sigla em inglês), o pesquisador e seus colegas devem iniciar em breve um projeto para mapear melhor os efeitos do fogo sobre alguns dos macacos mais ameaçados da Amazônia, lista que inclui animais como o cuxiú-preto (Chiropotes satanas) e o caiarara (Cebus kaapori), bem como o macaco-aranha-de-cara-branca. “São espécies carismáticas, importantíssimas como bandeiras para a preservação dos ambientes onde elas estão.”

No caso do macaco-aranha, outro elemento-chave da pesquisa, segundo Canale, será a interação dos biólogos com os indígenas da etnia ikpeng, do Xingu. O grupo costuma consumir a carne do primata em rituais de passagem e deve colaborar com os cientistas na busca de formas sustentáveis de captura. O contato com os povos nativos da região, além disso, tem reforçado a preocupação dos pesquisadores com o efeito da crise climática sobre a área.

“Volta e meia eles nos dizem: no tempo do meu avô, a seca durava quatro meses e o tempo das chuvas durava oito, agora são seis meses de chuva e seis de seca”, exemplifica o biólogo. Os modelos computacionais que tentam estimar o clima ao longo deste século apontam que a zona de transição da Amazônia é a mais vulnerável à chamada savanização, ou seja, a transformação da antiga floresta numa forma empobrecida do cerrado. Os incêndios poderiam acelerar esse processo e, ao mesmo tempo, ser estimulados por ele. “O nosso medo é que aqui esse ponto de virada já tenha acontecido.”​

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