Descrição de chapéu mudança climática indígenas

A luta dos nossos pais e avós agora conta com novas armas, os celulares, diz líder indígena

Samela Sateré conecta mudança climática à insegurança alimentar e defende desenvolvimento a partir da participação dos povos

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São Paulo

Há uma desordem no clima. Um ano de cheia exacerbada, outro de seca severa. "Ou a raiz seca e não dá mandioca, ou encharca, apodrece e não dá mandioca do mesmo jeito", conta a líder indígena e estudante de biologia Samela Sateré Mawé.

A explicação acompanha uma exigência: se os povos indígenas estão entre os mais afetados pela mudança do clima, devem ter lugar nas mesas onde se tomam decisões.

Samela no Acampamento Terra Livre, em Brasília - Carl de Souza/AFP

Como uma das representantes da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, que reúne membros de diversos setores da sociedade para repensar o desenvolvimento da região, Samela foi a Estocolmo, na Suécia, na última semana, para levar uma visão indígena aos debates que celebram os 50 anos da primeira conferência ambiental da ONU.

À Folha, a manauense conta sobre a busca de representação indígena, responde a visões preconceituosas e avalia os desafios para o protagonismo jovem e feminino, dentro e fora das aldeias. "Só as mulheres que estão fora do território têm vez e voz."

Qual mensagem você buscou levar à conferência Estocolmo+50? A gente busca levar uma visão decolonial do que é desenvolvimento, que é a proposta do envolvimento. A gente quer o envolvimento dos povos indígenas em tudo que tange nosso bioma. Se grandes empresas e investidores querem ter algum trabalho aqui na Amazônia, a gente quer ser consultado, quer estar nos espaços de tomada de decisão.
A gente vê [nessas conferências globais] pessoas ricas, com grande poder aquisitivo. É como se nós fôssemos moeda de troca. Como se estivéssemos ali para eles negociarem por nós.

Por muito tempo, tivemos muitas pessoas falando por nós: o que elas acham, o que elas pensam. Mas a gente acredita que nada é por nós sem nós.

As pessoas que estão lá debatendo não sofrem com as mudanças climáticas no dia a dia, não dependem do rio e da terra para sobreviver. Já os indígenas são um dos principais afetados pelos efeitos das mudanças climáticas.

Com quais efeitos vocês já lidam? A gente mora no Norte, no Amazonas. A gente nunca viu tantas cheias como agora. Um ano de cheia, outro de seca severa. Quando a chuva é pouca, não dá tempo de a roça germinar. As raízes secam, não dá mandioca suficiente para fazer farinha. Quando chove muito, apodrece tudo, fica muito encharcado, não dá para fazer a farinha da mesma forma.

Esse período maluco também influencia na reprodução de animais bioindicadores, como as minhocas, os besouros, que a gente usa tanto para a fertilidade do solo quanto para a pesca. Quando esses ciclos se alteram, ou eles não conseguem se reproduzir, ou se reproduzem demais, com muito calor. Acaba tendo uma desordem no clima.

Quais as consequências sociais dessa desordem? Fome. Ela é muito grande nos territórios indígenas, trazida pelas mudanças climáticas e também por invasões, desmatamento e queimadas, que também causam as mudanças climáticas.

Mas isso não é debatido nos grandes eventos de mudanças climáticas. O que é debatido lá é crédito de carbono, grandes empresas, grandes lucros, compensações ambientais. E as pequenas populações que dependem do clima?

Na COP26, última conferência do clima da ONU, o mundo conheceu a voz da liderança indígena Txai Suruí. Vocês estavam juntas lá e agora na Estocolmo+50. Na sua avaliação, o que impulsionou o protagonismo dos jovens indígenas? A ascensão da internet. Nós dominamos uma ferramenta que nossos antigos não dominam ainda. E é uma ferramenta eficiente dentro do movimento indígena, a gente viu isso durante
a pandemia.

A internet mobilizou muitas pessoas para ajudar os povos indígenas. E está ajudando com as denúncias sobre o que acontece no nosso território. Estamos protagonizando a luta dos nossos pais e avós com as nossas novas armas, que são os celulares e a internet.

Como começou o seu engajamento no movimento indígena? Nasci dentro do movimento indígena, na Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé. Minha avó foi a fundadora e, quando ela faleceu, minha mãe passou a ser a coordenadora.

Minhas primeiras lembranças do movimento indígena são de estar pintando, porque minha mãe pegava papéis que ela ganhava na reunião e me dava para que eu pintasse e ficasse quieta durante a reunião.
Quando entrei na universidade, através da política de cotas, em 2015, passei a ter um lugar de vez e voz dentro da universidade. Porque lá a gente via que entrava estudante indígena todo ano, mas não via ninguém se autoafirmando.

Então a gente fez um movimento de autoafirmação dentro das universidades. E como eu sempre estava no movimento, passei a ser convidada para falar nas reuniões. Fui desenvolvendo a fala, as pronúncias.

Esse protagonismo feminino é recente no movimento indígena? Como se desenvolveu? É um movimento novo, mas a associação não é nova. Só as mulheres que estão fora do território têm vez e voz.

A gente só conseguiu isso porque elas foram tiradas do território na década de 1970 pela atual Funai. Teve todo o impacto social de ir para Manaus, trabalhar em casa de família, não conseguir estudar. Então elas se organizaram em uma associação para poder sobreviver na cidade. Como eram todas mulheres, o protagonismo foi feminino. Mas no território ele ainda é masculino, porque o povo é patriarcal.

No movimento indígena nacional, existem poucas organizações de mulheres. Ano passado, organizamos a Anmiga (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade).

Agora, quando a gente pensa em lideranças indígenas, a gente pensa em nomes de mulheres. Isso para mim é muito bom, porque elas são minha inspiração, como a Sonia Guajajara, a Alessandra Munduruku e outras que sofreram grandes dificuldades também dentro dos seus territórios, com violações e homens olhando torto. É bem difícil que as mulheres se levantem. Principalmente a juventude.

Como avalia o tratamento dado aos povos indígenas pelo atual governo? Quando se tem uma Presidência que declara guerra aos povos indígenas, outras pessoas se sentem também livres para ameaçar nossos territórios, porque acham que são impunes.

A gente vê um desmonte dos órgãos de proteção ambiental e também os cortes na educação. A gente está sendo podado para não poder responder às ações contra a gente.

Já não havia demarcação de terras indígenas há muitos anos, desde governos anteriores. Mas neste governo isso se acentuou, porque foi falado escancaradamente que não haveria demarcação e foi anunciado um preconceito exacerbado contra os povos indígenas.

Qual é a sua resposta às falas preconceituosas? Não adianta falarem que os indígenas são empecilhos ao desenvolvimento, porque nossos territórios são os menores que temos desde a invasão. Só temos 13% de terras indígenas demarcadas. A gente era um país de 100% de terras indígenas. E nesses 13% é onde tem a maior conservação da biodiversidade.

Quando as pessoas desmatam, grilam as terras, não é para melhorar a economia do país. Não é para acabar com a fome do país. Nada disso fica no país. A produção de soja e do gado é para exportação e esse dinheiro vai para o bolso de poucas pessoas.

Embora a disputa presidencial chame mais atenção, boa parte dos retrocessos ambientais e de direitos indígenas são articulados no Congresso. Como pretendem influenciar essa configuração, agora no contexto eleitoral? Nós estamos investindo em mais representatividade indígena na política. Nós só temos uma representante indígena que é a Joenia Wapichana (Rede-RR). E com a entrada dela, muita coisa já virou o jogo para a gente.

No Acampamento Terra Livre, lançamos a bancada do cocar, com candidaturas de mulheres indígenas nos estados. A gente precisa estar nos espaços em que as leis são votadas.

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