Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

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Hermano Vianna

Todos os dias, conheço brilhantes mulheres indígenas no país

Liderança feminina traz generosidade radicalmente inclusiva

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Tempo rei. Vejam como as águas de repente ficam sujas. Ou: de repente ficam limpas, transparentes, potáveis. Há horas, quando tudo parece conspirar para o pior, em que surge uma novidade animadora, daquelas que reconfiguram — para melhor — o sistema operacional do mundo.

Não tenho dúvida: o mais alvissareiro acontecimento político nacional recente foi a realização da Marcha das Mulheres Indígenas. Não apenas pelo que acontece desde 2019 em Brasília. Mas por tornar visível, de maneira poderosa, uma movimentação/transformação que é resultado de muito trabalho resistente de muita gente há muito tempo, e o que aquilo indica para dar certo agora.

Pode parecer restritivo: só mulheres, só mulheres indígenas. Em tempos trágicos, de farinha muito pouca, o esperado é “meu pirão primeiro”. A Marcha segue movimento contrário e busca compartilhar o alimento com todo o planeta. É ato de generosidade radicalmente inclusivo.

Leia, por exemplo, o manifesto do Reflorestamentes, “grande chamamento” lançado no início de setembro, no calor da luta contra o marco temporal, pela ANMIGA - Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. Tudo ali é soma, solidariedade, cuidado, contra a “sobreposição sem precedentes de emergências que vivemos nos tempos de hoje”.

Tudo ali é para “todas e todos”. Tudo ali propõe a elaboração coletiva de “um trajeto de vida e reconstrução, que se baseie no encontro entre os povos, no cuidado com nossa Terra, na interação positiva de saberes.” Tudo ali em nome do “bem-viver”. Deveria ser a semente do melhor programa de governo que pode haver, no Brasil e em qualquer outro país.

Não é coincidência que isso aconteça quando há tantas mulheres ocupando cargos de liderança nas principais associações brasileiras de defesa dos direitos indígenas. Sônia Guajajara é coordenadora executiva da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).

Nara Baré é coordenadora-geral da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). Isso sem falar nas 85 organizações de mulheres indígenas, em 21 estados brasileiros, mapeadas pelo Instituto Socioambiental (ISA) no início de 2020.

Todos os dias, sou apresentado a nomes de outras mulheres indígenas com trajetórias brilhantes em vários campos de atuação. Grandes artistas, pensadoras, professoras, inovadoras em diversas áreas do conhecimento. Citarei aqui alguns exemplos, entre centenas de outros da mesma importância.

Começo recomendando artigo que foi uma das minhas leituras mais inspiradoras durante a pandemia, publicado no número mais recente da Piseagrama, provavelmente a melhor revista do Brasil hoje. Em “Tornar-se Selvagem”, Jerá Guarani relata a batalha para sua aldeia, situada na periferia paulistana, voltar a ter alimentação de qualidade: “Em seis anos conseguimos recuperar 50 variedades de batata doce e mais de nove tipos de milho.”

Tudo sem agrotóxico. Tudo distribuído para outras aldeias guarani, e também para “agricultores não orgânicos”. Dádiva faz bem para quem doa: quanto mais gente planta, “menos riscos teremos de perder de novo.”

Selvagem é também um “ciclo de estudos sobre a vida”, que soube se manter muito vivo durante o confinamento planetário, com novas experiências, em vários formatos e mídias. São deslumbrantes as Flechas Selvagens, vídeos (e mais) com lições fundamentais disponíveis no YouTube. Gosto especialmente do trecho com mixagem, na narração, das vozes de Ailton Krenak e Marcelo Gleiser, descrevendo a distribuição de matéria/energia no universo.

No sítio eletrônico do Selvagem é possível ter acesso a muitos cadernos “para baixar de graça”. Entre eles está o maravilhoso “Plantas Medicinais das Mulheres da Mata Norte”, com registros de conhecimentos afro-indígenas. Esse caderno se transformou também no ciclo de leitura “Mulheres, plantas e cura”, onde tive a alegria de conhecer Maria Silvanete Lermen, uma gênia, que poderia ser nossa ministra da Saúde. Precisamos de saúde de verdade. Como diz Silvanete: precisamos de “reativamento na mente das pessoas”.

É enorme e extremamente valiosa a sabedoria dessas mulheres, indígenas ou aliadas, que sabem aproveitar com criatividade a encruzilhada de conhecimentos que circulam no Brasil. No xamanismo os espíritos sobem, nas religiões afro-brasileiras os espíritos descem. Estrada de mão dupla entre as várias dimensões da realidade e seus processos de cura, com plantas guiando os diversos trajetos. Sem folhas não há vida, não há nada.

Utopia desesperada: com muitas folhas e chás, o Brasil inteiro seguindo o caminho do bem-viver, atrás da Marcha das Mulheres Indígenas. Lá vem.

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