Descrição de chapéu

Sobre os saberes indígenas e as ignorâncias do branco

Repórter visita Watokiri, casa de Davi Kopenawa, na Terra Indígena Yanomami, no Amazonas

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Watoriki, Terra Indígena Yanomami (AM) e São Paulo

Havia qualquer coisa de onírico. De repente, eu me vi andando pela grande casa escura onde mora um homem mais de uma vez indicado ao prêmio Nobel da Paz, assistindo ao encontro entre dois brasileiros destacados da cena cultural internacional: ela, escritora e artista plástica, com obras atualmente expostas pela Fundação Cartier, na França, depois de passar por Xangai, na China; ele, um filósofo best seller, tem seu livro mais recente já traduzido em diversas línguas estrangeiras. Os dois indígenas se emocionavam pelo encontro depois de muitos anos sem se ver.

A casa de Davi Kopenawa, chamada de Watoriki, numa região da Terra Indígena Yanomami denominada Demini, parece um lugar de sonhos. A maloca circular, com um grande pátio interno, fica no sopé de uma rocha imensa, uma pedra única de algo como cem metros de altura e outros tantos de largura. Perto da pedra escura, a grande casa, que abriga cerca de 150 moradores, parece um pequeno anel jogado ao chão.

Ehuana Yaira Yanomami também mora em Watoriki. Com formação de professora, ela estudou a evolução dos ritos tradicionais relacionados à primeira menstruação das meninas. Esse trabalho resultou em um livro didático, sobre menstruação, casamento, sexo e nascimento. "Yipimuwi Thëã Oni: Palavras escritas sobre menstruação" foi escrito com a antropóloga Ana Maria Machado e publicado em 2017 com apoio do MEC (Ministério da Educação e Cultura) em uma coleção de livros sobre saberes indígenas na escola.

Davi Kopenawa em sua casa
Davi Kopenawa em sua casa, na Terra Indígena Yanomami, - Leão Serva

Mas a maior repercussão veio para seu trabalho como desenhista, dando forma visual a mitos e outros elementos da cultura yanomami. No dia em que testemunhei seu encontro com Ailton Krenak, quando visitávamos a Terra Indígena por ocasião da comemoração dos 30 anos de sua homologação, no final de maio, ela comentava frustrada que não tinha podido ir à França para a abertura da exposição "Utopia", na cidade de Lille, onde seus trabalhos aparecem ao lado de obras de outros artistas indígenas brasileiros, como Jaider Esbell (Macuxi, morto em 2021). Poucos dias antes da estreia, Ehuana se deu conta de que tinha perdido a carteira de identidade e por isso o passaporte não ficou pronto a tempo de embarcar para a abertura da mostra, em 14 de maio. Ela pretende ir ver a exposição tão logo obtenha o documento de viagem. O evento, com curadoria do antropólogo franco-brasileiro Bruce Albert, fica em cartaz até o dia 2 de outubro.

No ano passado, os desenhos da professora, escritora e artista plástica já tinham sido apresentados em Xangai, na China, em mostra também promovida pela Fundação Cartier.

Pouco antes do encontro entre os dois, Ailton Krenak comentava o lançamento de novas traduções de seu livro "Ideias Para Adiar o Fim do Mundo" para uma série de línguas estrangeiras, como inglês, italiano, turco, sueco e alemão. O líder indígena tornado famoso ainda jovem por um discurso performático durante os debates na Assembleia Constituinte, que preparava a Carta de 1988, é hoje um filósofo celebrado em vários cantos do mundo.

Ailton Krenak e a artista e professora Ehuana Yaira Yanomami também mora em Watoriki
Ailton Krenak e a artista e professora Ehuana Yaira Yanomami também mora em Watoriki - Leão Serva

Iniciado no movimento político nacional ao lado de Davi Kopenawa e outros líderes indígenas no enfrentamento ao projeto do governo do general Figueiredo (1979-1985), último da Ditadura Militar, que queria reduzir os direitos dos povos originais, Krenak voltava à casa de Kopenawa para a celebração de uma vitória do movimento indígena (a homologação da Terra Yanomami, em 1992) e a discussão dos desafios colocados pelo atual governo, também de formação militar, que mais de quarenta anos depois, procura reduzir os direitos assegurados aos indígenas na Constituição brasileira.

O presidente da República costuma dizer que "os índios estão cada vez mais parecidos conosco". Aquele encontro de excelências deixou claro que sonho seria se o inculto presidente fosse "cada vez mais parecido com os indígenas". Mas em verdade, ele está muito longe do Prêmio Nobel da Paz; é incapaz de produzir qualquer coisa relacionada às artes, muito menos para expor em Paris ou outra capital; ou quem dirá escrever livros de pensamento filosófico sobre como adiar o fim do mundo, quando todos os seus atos parecem voltados para apressar o apocalipse.

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