Cobrar reparação pelas mudanças climáticas na Justiça é tendência, diz pesquisadora

Joana Setzer, professora da London School of Economics, coordena estudo que mostra que casos dobraram desde 2015; no Brasil, votação recente do Fundo Clima no STF aponta caminhos, avalia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cristiane Fontes Marcelo Leite
Oxford e São Paulo

No último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU), a litigância climática —nome dado ao conjunto de ações judiciais, processos administrativos, inquéritos e ações investigatórias sobre o tema— foi descrita como uma estratégia que vem influenciando o resultado e a ambição das ações nessa área.

Uma das maiores especialistas no assunto, Joana Setzer, brasileira radicada na Inglaterra há 15 anos, é professora assistente no Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment da LSE (London School of Economics). Na instituição, ela lidera, desde 2020, um projeto que mantém um banco de dados sobre legislação, políticas públicas e casos de litigância climática existentes pelo mundo.

Como parte dessa iniciativa, Setzer e a pesquisadora Catherine Higham lançaram na semana passada um relatório global que identificou 2.002 casos de litígio climático desde 1986. O número de processos dobrou desde 2015.

Pessoas seguram cartazes em frente a edifício grandioso com colunas em estilo grego-romano
Ativistas protestam em frente à Suprema Corte dos EUA durante julgamento que limitou poderes de agência ambiental para combater mudanças climáticas - Sarah Silbiger - 30.jun.2022/Reuters

O estudo aponta que a via judicial se tornou uma forma de cobrar compromissos climáticos de governos e de processar empresas de combustíveis fósseis.

"As ações fora dos Estados Unidos aumentaram significativamente nesse último ano", diz Setzer. Ela explica que o fenômeno tem crescido no Sul Global, especialmente na América Latina.

No Brasil, Setzer destaca o caráter inédito do processo de julgamento da chamada "pauta verde" no STF (Supremo Tribunal Federal). Entre as ações, está uma ajuizada por PT, PSOL, PSB e Rede acusando o governo de negligenciar a aplicação do Fundo Clima no combate ao desmatamento ilegal da Amazônia. Na última semana, a corte proibiu o contingenciamento dos recursos.

Outra decisão recente que chama atenção é a da Suprema Corte americana sobre a ação do estado da Virgínia Ocidental contra a EPA (Agência de Proteção Ambiental dos EUA). Nesse caso, porém, a litigância foi usada para se opor às ações climáticas, limitando os poderes da agência.

"Este julgamento aponta para a importância de países contarem com uma legislação clara, que seja capaz de legitimar a ação de governos e agências reguladoras na proteção do clima", comenta Setzer.

Como funciona o trabalho de vocês para criar uma base global de dados sobre litigância climática? A London School of Economics tem uma parceria com o Sabin Center [for Climate Change Law] da Universidade Columbia (EUA), que mantém uma base de dados de todas as ações climáticas no mundo. A base de dados da LSE também tem todas as leis e políticas climáticas do mundo.

A base começa com os primeiros casos, no final da década de 1980, mas são pouquíssimos, muito concentrados, nos Estados Unidos e depois na Austrália. Ao longo do tempo, especialmente depois de 2015, há uma mudança não só na quantidade, mas também por que passa a ser um fenômeno global, com ações na América Latina, no continente africano, na Europa e na Ásia.

Quantas ações já compilaram? E o quanto isso mudou desde 2015? Hoje nós temos, no total, conhecimento de mais de 2.000 ações no mundo, sendo que mais de mil são nos EUA. O que é interessante é que desde 2015 o número dobrou.

Retrato de mulher com braços cruzados
Joana Setzer, advogada brasileira e professora da LSE (London School of Economics), especialista em litigância climática - Jeremie Souteyrat/Divulgação

Poderia dar um exemplo de um processo de litigância climática que já tenha colhido resultado? Sim, por exemplo, um caso no Paquistão que foi trazido por um fazendeiro chamado Ashgar Leghari contra o governo do Paquistão [em 2015]. Nesse processo, ele afirma que o Estado do Paquistão não está preparado para a adaptação às mudanças climáticas, que o governo tem uma lei que, em princípio, requer uma série de políticas, mas elas não saíram do papel.

O juiz decide que, sim, o governo está atuando aquém do que deveria —e, muito importante, que essa é uma questão de direitos humanos e que a omissão do Estado em não tomar aquelas medidas afeta o direito à vida e à saúde.

O segundo caso que eu gostaria de mencionar foi proposto perante as cortes da Holanda por uma organização não governamental chamada Urgenda. Em 2015, a Corte Distrital de Haia aceita o que essa ONG estava pedindo, que é basicamente o reconhecimento de que o governo holandês não está demonstrando a ambição que deveria para lidar com as mudanças climáticas. O argumento é: a Holanda é um país rico, com todas as condições de ter metas mais ambiciosas.

Se você pensar no princípio da separação dos Poderes, é muito complicado isso, porque o Legislativo já tinha legislado, o Executivo estava agindo. Não é uma falta de ação, como no caso do Paquistão, mas um pedido de mais ambição. Esse é um caso muito interessante, porque a corte distrital aceita, o governo apela e um dos argumentos é a questão da separação dos Poderes. O outro é que a Holanda responde por uma quantidade muito pequena de emissões globais.

Mas o tribunal de apelação manda o governo fazer mais, e o governo apela de novo. O caso vai à Suprema Corte da Holanda, que concorda com as cortes anteriores. Com isso, o governo passa a ser obrigado a reduzir as emissões e a acabar com o setor de carvão.

Nos EUA, país com o maior número de casos de litigância climática, o que vem acontecendo de novo? Tem um caso muito importante que se chama Juliana versus United States, que fala que os EUA têm ativamente investido em atividades que são perigosas para as futuras gerações. Ele foi trazido por um grupo de jovens. Eles tiveram uma decisão favorável, mas depois essa decisão foi revertida. O caso ainda está em apelação.

O que é muito interessante ver é que durante o governo Trump, em que houve um esforço explícito em desregulamentar a legislação ambiental, o número de litígios aumenta muito, como uma forma de brecar esses atos de retrocesso, uma história que a gente vê acontecendo também no Brasil.

Ao mesmo tempo, nos EUA, a litigância também tem sido utilizada para se opor a ações climáticas. O caso mais importante é o da Virgínia Ocidental versus EPA (Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos), que foi julgado pela Suprema Corte [na semana passada]. A decisão restringe os poderes da EPA para regular a redução de emissões de gases de efeito estufa.

A ação foi proposta pelo estado da Virgínia Ocidental e 18 outros estados majoritariamente liderados por republicanos e algumas das maiores empresas de carvão do país. Em um contexto mais amplo, esse julgamento aponta para a importância de países contarem com uma legislação clara, que seja capaz de legitimar a ação de governos e agências reguladoras na proteção do clima.

No Sul Global, a América Latina é a região com maior número de casos, certo? Quais são as características das ações da região? A litigância climática no Sul Global é um fenômeno relativamente novo e que tem aumentado bastante. Neste ano, a gente reportou o maior número de casos no Sul Global. Hoje sabemos de 88 casos no Sul Global: a maior parte, 47, na América Latina, 28 casos na região da Ásia e do Pacífico e 13 na África.

O que é interessante é que não é que não exista litigância climática no Sul Global, apesar de serem apenas 88 casos conhecidos até hoje. O que acontece é um histórico de muitos anos de litigância ambiental para lidar com problemas muito visíveis no dia a dia das pessoas, como a questão da contaminação de recursos hídricos e a questão do lixo. São problemas muito mais palpáveis do que a questão climática muitas vezes.

Então é importante ter claro que existem milhares de ações no Sul Global que são relevantes para a proteção do clima, mas simplesmente não são trazidas como ações climáticas.

E no Brasil o que é destaque? A litigância climática no Brasil tem aumentado muito. Nos últimos anos, passou a ser muito voltada para a insuficiência de fiscalização por parte do governo Bolsonaro. E também ações que dizem respeito, parecido a isso que eu falava sobre Trump, com a desregulamentação de vários órgãos que existiam para financiar as ações climáticas.

Tem uma ação, por exemplo, que lida com a paralisação do Fundo Clima. Ela resultou em um processo muito interessante, que foi a audiência convocada pelo ministro [Luís Roberto] Barroso. Uma coisa única do Brasil, uma ideia que eu acho que é excelente do STF, que diversas outras cortes do mundo poderiam muito bem copiar, que é reconhecer, em primeiro lugar, que a corte não está acostumada com esse tema.

A forma como o STF conduziu essa audiência foi convidando atores da sociedade civil, da academia, do setor produtivo, tanto dos sindicatos quanto das federações de indústria, do setor agropecuário, das ONGs e das comunidades indígenas. Então, foi muito representativa da complexidade do problema e, nas palavras do Barroso, foi uma oportunidade para o STF se educar.

Mas existem diversas ações muito interessantes no Brasil, como uma proposta pela Conectas Direitos Humanos contra o BNDES e o BNDESPar, subsidiária responsável por gerir as participações acionárias que o banco detém em diversas empresas brasileiras, questionando que os riscos e os danos climáticos não estão sendo considerados nesses financiamentos. É uma ação que é potencialmente muito relevante, considerando que BNDES e BNDESPar são as principais financiadoras da economia brasileira.

Como a questão dos direitos humanos aparece tanto nas ações quanto nas decisões judiciais? É uma área da litigância climática que tem crescido muito recentemente. Fiz um levantamento com uma colega sobre os casos existentes, e a gente encontrou mais de cem ações de clima e de direitos humanos.

Isso passou a ser fundamental em diversas ações, primeiro, porque humaniza a questão das mudanças climáticas. Uma coisa é aquela história de urso polar no Ártico, outra é falar sobre esse ser um problema que vai resultar em pessoas morrerem, passarem fome, não terem o que beber e terem que sair das suas casas porque elas vão ser alagadas. Todos os sistemas legais têm a proteção do direito à vida como o mais alto, e essas ações passam a trazer essa urgência.

Jovens com máscaras seguram placas com mensagens como "pelo ar que nós respiramos" (em inglês)
Ativistas fazem manifestação em Nova York contra a Suprema Corte dos EUA na última quinta-feira (30) após decisão que limitou poderes da EPA (agência ambiental do país) - Ed Jones - 30.jun.2022/AFP

Depois, foi muito importante para a questão intergeracional, porque você consegue também proteger, nos poucos países em que isso existe na Constituição, ou, em outros países, por meio de atores que representam isso, futuras gerações.

Como são calculados os danos causados por empresas no intuito de mensurá-los nas ações sobre a crise climática? A base dessas ações são as ações sobre cigarro e amianto. Todas tiveram isto em comum: empresas que não estavam fazendo nada ilegal, que tinham atividades permitidas pelo Estado, mas que, em algum momento, você mostra que aquelas atividades causam danos —o cigarro e o amianto causam câncer— e essas empresas passam então a patrocinar campanhas de desinformação e não param de fazer o que elas faziam.

Há uma primeira leva de ações [climáticas] no início dos anos 2000, inclusive uma série após o furacão Katrina. E essas ações todas não têm sucesso. Mas as novas ações compensatórias têm uma chance maior de ganhar, porque o mundo hoje não é o mesmo dos anos 2000. Existe muito mais consciência sobre o problema e muito mais ciência estabelecida.

Mas falta ainda um pedaço, que é aquilo que a gente chama de nexo de causalidade: quem disse que aquelas emissões resultaram naquele dano?

Nisso entra um novo capítulo, a ciência da atribuição, um ramo da ciência que também tem se desenvolvido muito. Os pesquisadores mostram que, sim, esses eventos aconteceriam de qualquer maneira, mas que foram mais extremos e mais mortais porque tem esse pedaço que é atribuído às mudanças climáticas.

Poderia contar um exemplo de ação nesse sentido? Um dos melhores exemplos é uma ação proposta por um agricultor peruano chamado Saúl Luciano Lliuya, que mora num vilarejo nos Andes chamado Huaraz.

Homem de pé na margem de um lago de cor azul com montanhas cobertas de neve ao fundo
O agricultor peruano Saúl Luciano Lliuya que processa a empresa alemã RWE por prejuízos em Huaraz, seu vilarejo nos Andes - Luka Gonzales - 23.mai.2022/AFP

Ele entrou com ação contra a [empresa de energia] RWE, proposta na Alemanha, onde a RWE é sediada. Na ação, ele fala que a neve vai derreter das montanhas e vai alagar o vilarejo. Ele mostra que a RWE contribuiu com x por cento das emissões totais e que o custo para proteger o vilarejo com uma construção mais sólida que vai impedir que a neve o alague vai custar tanto. E aí ele pede da RWE aquele x por cento, que é um valor super baixo: chegava em 21 mil euros na época que a ação foi proposta.

Ou seja, é um valor irrisório, mas tem uma significância enorme, porque ela é a narrativa do problema global e da injustiça climática e pode abrir as comportas para outras ações compensatórias.

Seria possível responsabilizar pessoalmente um presidente? Isso seria possível em relação a Jair Bolsonaro? Uma tendência que a gente tem visto é, sim, mais litigância que busca responsabilizar indivíduos. Então, dentro dessa tendência, você pode responsabilizar o CEO, o consultor, o advogado ou o presidente, em princípio, que, sabendo do problema, tendo a legislação que mandava fazer uma coisa, fez o oposto.

No caso específico do Bolsonaro, há o grau de desrespeito à legislação tão patente que despertou uma revolta mundial. Em outubro de 2021, foi iniciada uma ação muito interessante, uma comunicação apresentada contra Bolsonaro perante a ICC (Corte Internacional Criminal), chamada o Planeta contra Bolsonaro.

É uma ação que, claro, vai demorar e, ainda que chegue num procedimento que conclua [crime], não significa que Bolsonaro vai ser preso, mas a ideia é encaminhar o reconhecimento de que está cometendo um crime contra a humanidade. Não é só um crime contra o Brasil, contra os brasileiros, contra os índios, mas ele está cometendo um crime contra a humanidade.


RAIO-X

Joana Setzer, 43

Professora assistente no Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment da LSE (London School of Economics). Formada em Direito na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), fez mestrado na USP (Universidade de São Paulo), além de mestrado e doutorado na LSE. Radicada na Inglaterra há 15 anos, trabalhou anteriormente como advogada na área ambiental durante oito anos no Brasil.


ENTENDA A SÉRIE

Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanha ainda as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU em novembro, no Egito). O projeto tem o apoio da Open Society Foundations.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.