Descrição de chapéu The New York Times

Cidade australiana vive seus últimos dias depois de amianto matar 10% da população

Câncer provocado pela exposição ao material matou 2.000 das 20 mil pessoas que viviam em Wittenoom

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Yan Zhuang
Wittenoom | The New York Times

Sentado num telhado em uma cidade fantasma no meio do outback australiano, Mario Hartmann estava esperando as escavadeiras. Ele subia diariamente porque só ali havia sinal de internet. Com a cidade mais próxima a uma hora e meia de distância, sabia que tinha de ser cuidadoso. "Você só pode tomar 15 cervejas. Com mais de 15, não consegue subir aqui."

Mas riscos muito piores assombram a cidade. No quintal abaixo, o cão pastor australiano de Hartmann corria atrás de uma bola, levantando nuvens de poeira que continham uma ameaça invisível: o amianto azul. Apenas uma inalação pode levar as fibras para os pulmões, desencadeando um câncer agressivo e incurável. É por isso que o governo está prestes a acabar com a cidade, chamada Wittenoom.

Visão panorâmica de Wittenoom, que virou uma cidade fantasma, poluída por décadas de mineração de amianto
Antes um símbolo de prosperidade econômica, Wittenoom é agora uma cidade fantasma, poluída por décadas de mineração de amianto - Matthew Abbott/NYT

Hartmann, de 59 anos, não deu atenção a isso. Olhou para os campos castigados pelo sol e as cadeias de montanhas vermelhas além da cidade, onde fica sua casa de férias, e comentou: "Como é bonito isso, hein?"

Wittenoom, que já foi um símbolo de prosperidade econômica, é hoje uma das maiores tragédias industriais da Austrália, tornada inabitável pelas ações irresponsáveis de mineradoras e negligenciada por um governo que não fez nada para limpá-la.

A cidade foi construída há muito tempo sob a crescente demanda por produtos de amianto, como revestimentos e isolamento, com a promessa de desenvolvimento econômico ofuscando novas preocupações com a saúde. Das 20 mil pessoas que viveram na cidade ou trabalharam na mina próxima, 2.000 morreram de doenças relacionadas ao amianto.

Wittenoom se tornou uma bomba-relógio cancerígena quando os resíduos de mineração conhecidos como rejeitos foram trazidos para a cidade para ser usados na pavimentação das ruas e em playgrounds e jardins para conter a poeira. Perto da mina, os rejeitos —mais de três milhões de toneladas— foram empilhados como montanhas, escorrendo pelos desfiladeiros.

Sessenta anos depois do fim da mineração, o governo do estado da Austrália Ocidental anuncia que o risco à saúde permanece inaceitavelmente alto.

Durante mais de uma década, houve tentativas de fechar Wittenoom para impedir a visita de turistas em busca de emoção. A cidade foi removida dos mapas oficiais e a água e a eletricidade foram desligadas. O governo tentou retirar os residentes indenizando-os. Quando isso falhou, aprovou um projeto de lei este ano para adquirir os demais imóveis à força.

No processo, o grupo de residentes que se recusava a sair se transformou em símbolo de autodeterminação obstinada, lutando pelo direito de apostar a própria vida.

Mas, no início de setembro, as duas pessoas que ficaram estavam quase prontas a desistir da luta. Uma delas era Hartmann, que aceitou vender sua propriedade há alguns anos, mas ainda retornava todos os anos durante alguns meses.

Legado tóxico

Maitland Parker, que cresceu nos arredores de Wittenoom durante seu auge, lembra-se de nuvens de poeira subindo de uma mina em atividade e de crianças indígenas como ele pegando carona na boleia dos caminhões que transportavam fibras de amianto. Seu irmão contou que mastigava os rejeitos como chiclete. Mas as pessoas só perceberam o que estavam respirando depois de décadas. "A gente não fazia ideia, realmente", disse Parker.

Quando visitou Wittenoom em uma tarde de agosto, usou máscara. Hartmann fez troça: "Por que a máscara, hein?" Parker já foi diagnosticado com mesotelioma, câncer causado pela exposição ao amianto. Isso é parte da devastação de Wittenoom. Embora muita gente que trabalhou diretamente com o amianto não tenha sofrido de câncer, ele desenvolveu a doença, mesmo nunca tendo vivido na cidade nem trabalhado na mina.

O mesotelioma pode ser tratado, mas não curado, e a expectativa de vida depois do diagnóstico é normalmente de um a dois anos. Mas Parker, de 69 anos, continua forte depois de ter recebido seu diagnóstico em 2016. "Ainda estou vivo. Deveria estar morto." Com o tempo que lhe sobra, assumiu a missão de descontaminar a cidade.

A casa onde Mario Hartmann estava morando, com uma vista panorâmica de Wittenoom; o morador de 59 anos teve de se mudar por ordem do xerife
A casa onde Mario Hartmann estava morando, com uma vista panorâmica de Wittenoom; o morador de 59 anos teve de se mudar por ordem do xerife - Matthew Abbott/NYT

Depois que a mina fechou, não houve tentativas de reabilitar a terra. O povo banjima, que vive ao redor de Wittenoom há milhares de anos, ficou com o legado. Seus integrantes ainda vão para as cadeias de montanhas e os desfiladeiros perto da cidade. Dizem que não têm escolha; é sua obrigação cultural e espiritual. Mas, toda vez que escolhem, precisam decidir entre seu modo de vida e sua saúde. A Austrália Ocidental tem uma das maiores taxas de mesotelioma do mundo, e entre a população indígena do estado o número é ainda maior.

Parker afirmou que a responsabilidade era do governo da Austrália Ocidental: "Agora, eles não se importam com o sofrimento." Ele e outros ligados a Wittenoom acreditam que o fechamento da cidade anunciará uma retomada da mineração na área. Eles temem que os avisos sobre a arrogância industrial que a cidade simboliza serão ignorados pela mesma indústria que a destruiu.

Gina Rinehart, a mulher mais rica da Austrália, cujo pai minerava amianto em Wittenoom, planeja extrair minério de ferro fora da zona de contaminação e também dentro dela.

A dor que Parker sente a cada respiração é um lembrete de que seu tempo é curto. "Mas, enquanto eu ainda estiver me movimentando, respirando e defendendo a limpeza da minha região, bom, é isso que vou fazer."

Aquela que restou

Uma casa bem conservada se destaca no terreno baldio com tambores de óleo enferrujados, placas derrubadas e janelas seladas que é Wittenoom. Na porta da frente, um aviso educado, rabiscado em uma placa com letra caprichada, cumprimenta os visitantes: "Por favor, não entre. Ainda tem gente morando aqui. Obrigada."

Uma pessoa, na verdade. Lá dentro, Lorraine Thomas, de 80 anos, a última residente de Wittenoom, estava embalando 40 anos de pertences em caixas: móveis antigos, montanhas de documentos, roupas cujos proprietários haviam ido embora fazia muito tempo. "São coisas que colecionei por aí." Foi um processo lento. Ela havia perdido um prazo para sair em junho e outro em 31 de agosto. No início de setembro, estava esperando para ver se as autoridades a removeriam à força.

A gente não fazia ideia, realmente

Maitland Parker

Aborígine australiano, sobre o perigo de inalar fibras de amianto

Enquanto contava os dias, voltou-se para as memórias que tinha da cidade, para onde se mudou com suas três filhas novas depois da morte de seu primeiro marido. Foi em Wittenoom que conheceu seu segundo marido, Lesley, e construiu uma vida com ele administrando uma loja de gemas e turismo.

Mesmo depois que as filhas partiram, que o marido morreu, que a cidade desapareceu e que sua casa cedeu, ela jurou que nunca iria embora, relutante em se separar de um lugar que havia se tornado o memorial de um tempo mais feliz e de uma vida mais plena. Para permanecer, era preciso ser autossuficiente; quando ficou trancada do lado de fora de sua casa recentemente, quebrou uma janela para entrar. Mas, quando sua saúde piorou, admitiu que não poderia ficar para sempre.

Em 8 de setembro, o inevitável aconteceu: os oficiais do xerife chegaram sem avisar e despejaram Thomas.

Hartmann também saiu por ordem do governo, levando seu trailer para um desfiladeiro próximo para passar o resto de suas férias.

E Parker continuará esperando para ver se as lições de Wittenoom serão aprendidas.

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