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Rolou química: pesquisa brasileira descreve caso inédito de onças que se tornaram pais em cativeiro

Pesquisadores observaram reprodução e cuidado de mãe com filhote em Jundiaí (SP)

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São Paulo

Um dos maiores desafios para a conservação de animais ameaçados de extinção de grande porte é replicar as condições de vida do animal em cativeiro. Tal barreira é tida como a principal que impede a reprodução dos animais que estão sob cuidado.

No caso dos grandes felinos, como a onça-pintada, comportamentos erráticos, estereotipados (repetitivos) ou então agressivos com outros indivíduos da mesma espécie costumam limitar o sucesso reprodutivo. Até agora.

Pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo), campus Ribeirão Preto, Ufscar (Universidade Federal de São Carlos), UFTM (Universidade Federal do Triângulo Mineiro) e Associação Mata Ciliar, em Jundiaí (SP), conseguiram pela primeira vez registrar um caso bem-sucedido de reprodução de um casal de onças-pintadas e de cuidado parental da mãe com os filhotes.

O artigo relatando o caso foi publicado no último mês na revista especializada Theriogenology Wild.

As onças Tabatinga (fêmea, acima) e Codajás (macho, abaixo) demonstram afeto após uma reprodução bem-sucedida em cativeiro
As onças Tabatinga (fêmea, acima) e Codajás (macho, abaixo) demonstram afeto após uma reprodução bem-sucedida em cativeiro - Pamela Modena

O estudo ocorreu na Associação Mata Ciliar, onde as duas onças se encontravam desde 2015, quando foram levadas após serem resgatadas por agentes do Ibama.

Tabatinga, a fêmea, foi levada à sede da Associação Mata Ciliar em 15 de outubro de 2015 aos sete meses de idade. Ela foi encontrada sozinha na cidade de Tabatinga (no Amazonas, daí o seu nome), aos dois meses de idade, por agentes do Ibama e permaneceu cerca de cinco meses no Centro de Triagem de Animais Selvagens (Cetas) de Manaus.

Codajás, um macho saudável, chegou ao instituto em Jundiaí no mesmo dia que Tabatinga, com oito meses de idade. Ele foi apreendido pelo Ibama, ainda filhote, de um domicílio após a família matar sua mãe e irmãos.

A química rolou entre os dois e, com algumas semanas de convívio e ciclos estrais depois (como é o nome científico do cio), a gestação de Tabatinga foi confirmada. Os filhotes, um macho e uma fêmea, nasceram em 2018, e Tabatinga e os filhotes foram acompanhados no período pré e pós-parto, durante os primeiros meses de vida, por meio de câmeras de infravermelho (visão noturna) escondidas no recinto.

Para evitar conflitos e diminuir o estresse da fêmea, Tabatinga e Codajás foram separados algumas semanas antes do parto.

O principal achado do estudo foi conseguir confirmar e registrar pela primeira vez alguns comportamentos que envolvem cuidado parental da onça com os filhotes em cativeiro.

Os registros de imagem produziram mais de dez horas de filme, e os pesquisadores os dividiram em três fases para fazer a análise de comportamento: a fase 1, de pré-parto e logo após o parto; fase 2, quando a fêmea foi colocada em isolamento em uma área mais escura e que imitava uma toca; e a terceira e última fase, quando fêmea e filhotes tiveram acesso livre ao resto do recinto.

Na primeira fase, ainda era alto o nível de estresse de Tabatinga, por isso, também foi elevada a frequência de comportamentos estereotipados (mais de 50%). Nas fases 2 e 3, porém, foram registrados comportamentos de afeto (42% e 15%), exploração (30% e 33%) e manutenção (ou cuidado; 15% e 14%) dos filhotes, com lambidas e brincadeiras.

"O único ponto que talvez seja até mais difícil de decifrar é que não comparamos efetivamente com o que é esperado na natureza justamente porque falta essa informação. Com base nas gravações, podemos afirmar se o comportamento da Tabatinga está ficando mais ou menos saudável, comparado com o comportamento estereotipado, e nós vimos que está", afirma o biólogo Vinicius Marques Lopez, um dos autores do estudo.

Além disso, a reprodução natural foi bem-sucedida, algo extremamente raro para animais em cativeiro —os outros casos de reprodução de onça em ambientes controlados ocorreram por meio da inseminação artificial. O confinamento nestas espécies é um problema sério, uma vez que onças são animais solitários e territorialistas, com áreas que abrangem dezenas de quilômetros quadrados.

De acordo com Lopez, o estudo traz indicativos de ferramentas e enriquecimento ambiental que outros zoológicos e institutos de pesquisa podem replicar.

"Como há muitos exemplos de filhotes de onça-pintada em cativeiro frutos, em geral, de inseminação artificial, nossa pesquisa pode ajudar a tentar recriar esse ambiente para reduzir os comportamentos menos saudáveis", diz.

"Nós utilizamos alguns elementos para criar um ambiente similar ao de uma toca para a mãe, e isso ajudou ela a reduzir os comportamentos estereotipados e aumentar os comportamentos de afeto, por exemplo. Imaginamos que é neste momento durante o período natural com o filhote em que ela registra os comportamentos de lamber, cuidar, trazer de volta para o ninho etc.", completa.

Outra hipótese levantada pela pesquisa, e que pela primeira vez traz indícios de resultados, é se o contato necessário de felinos com os pais para aprender comportamentos de cuidado parental ocorre nos dois primeiros meses de vida, uma vez que foi nesse período que tanto Tabatinga quanto Codajás foram separados de suas respectivas famílias.

"O comportamento em cativeiro geralmente mostra que os animais vivem em um estado constante de estresse, exibindo comportamentos repetitivos e sem função, com um estado mental não natural e pouco saudável para o animal. Estratégias de enriquecimento ambiental e modos de tornar os recintos os mais naturais possível auxiliam no bem-estar, podendo ajudar na reprodução de espécies ameaçadas", afirma o pesquisador da UFTM Rhainer Guillermo-Ferreira, também autor do estudo.

A importância de manter cativeiros em que onças-pintadas possam se reproduzir pode significar um passo crucial para a preservação da espécie, reforçam os especialistas.

O filhote macho de Tabatinga, único sobrevivente do casal, é um importante reprodutor em outros zoológicos e pode também ajudar a passar adiante o cuidado parental da mãe para suas proles, destacam ainda.

Erramos: o texto foi alterado

​Rhainer Guillermo-Ferreira é pesquisador da UFTM (Universidade Federal do Triângulo Mineiro), não da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), como afirmado em versão anterior do texto. A UFMG não participou do estudo.

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