Cidade em Rondônia aprova primeira lei que garante direitos a um rio

Texto afirma que o rio Laje tem o direito de 'manter seu fluxo natural', 'nutrir' e 'ser nutrido'

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Brasília

"Ficam reconhecidos os direitos intrínsecos do Rio Laje —Komi-Memen— como ente vivo e sujeito de direitos, e de todos os outros corpos d´água e seres vivos que nele existam naturalmente ou com quem ele se inter-relaciona, incluindo os seres humanos, na medida em que são inter-relacionados num sistema interconectado, integrado e interdependente."

É assim que a Câmara Municipal de Guajará-Mirim (RO) definiu o Laje na primeira lei no Brasil que reconhece os direitos legais de um rio.

Moradores no rio Lage, que teve os direitos reconhecidos em lei
Moradores no rio Lage, que teve os direitos reconhecidos em lei - Hely Chateaubriand/Comvida

Segundo o texto da lei municipal, o rio tem o direito de "manter seu fluxo natural", "nutrir e "ser nutrido", "existir com suas condições físico-químicas adequadas ao seu equilíbrio ecológico" e se relacionar com seres humanos desde que "de suas práticas espirituais, de lazer, da pesca artesanal, agroecológica e cultural".

A proposta foi de autoria do vereador Francisco Oro Waram (PSB), liderança da aldeia Waram, que fica na região do rio Lage. Trata-se de um rio amazônico chamado pelos indígenas de Komi-Memen e que desemboca no Madeira, que por sua vez alimenta o Amazonas.

A concessão dessas prerrogativas ao rio segue uma corrente de reconhecer a própria natureza como detentora de direitos, indo além da regulação da sua exploração pelo ser humano.

A tese parte do princípio que o meio ambiente tem direitos inerentes à sua existência, que devem ser reconhecidos na legislação tal qual os dos cidadãos.

Rio visto a partir de uma margem, passando embaixo de uma ponte de ferro
Trecho do rio Lage próximo ao municipio de Nova Mamoré (RO); rio teve os direitos reconhecidos por lei aprovada em Guajará-Mirim (RO) - Eliza Passos

Em 2018, a Folha contou a história do primeiro município a adotar o entendimento para a sua natureza. Foi o caso de Bonito, em Pernambuco.

Desde então, mais quatro cidades no país já instituíram em seu arcabouço jurídico dispositivos semelhantes: Paudalho (PE), Florianópolis (SC), Serro (MG) e Guajará-Mirim —a norma concedendo direitos à natureza na cidade de Rondônia foi aprovada cerca de um mês antes da do rio Laje.

Os estados de Santa Catarina, Minas Gerais, Paraíba e Pará também têm propostas legislativas mais ou menos avançadas nesse sentido.

Fora do país, o rio Ghandi, na Índia, já teve direitos reconhecidos por iniciativa semelhante, assim como o rio Whanganui, na Nova Zelândia. Há também cidades nos Estados Unidos que trilharam o mesmo caminho.

Os vanguardistas nesse quesito são Equador e Bolívia, que desde 2008 e 2010, respectivamente, criaram leis em nível nacional para conceder direitos ao meio ambiente.

"O rio Laje é nossa vida, nossa mãe, fornece nossos peixes, nossa sobrevivência", diz o vereador Francisco.

A nova lei prevê a criação de um comitê de guardiões do rio, composto por integrantes da comunidade indígena, pescadores, da organização Oro Wari, das mulheres artesãs indígenas e da Universidade Federal de Rondônia.

A intenção é que o órgão seja o representante dos direitos do rio e seja consultado antes de empreendimentos que afetem suas águas, por exemplo.

Waran afirma que suas principais preocupações acerca do rio são projetos de hidrelétricas em seu curso e o avanço do plantio de soja, que segundo ele usa agrotóxicos que podem contaminar as águas.

De acordo com o vereador, as plantações da monocultura já estão na fronteira da Terra Indígena Igarapé Lage, onde vivem indígenas Wari.

"Hoje a comunidade indígena é ameaçada por invasores que desmatam as florestas, por pescadores ilegais e por grileiros. O plantio de soja está na porta da nossa aldeia e também as usinas hidrelétricas ameaçam o rio. Vamos usar a nova lei para ter voz, agora as empresas terão que nos consultar primeiramente [antes de tentar algum empreendimento]", diz.

O vereador contou com apoio do ativista Iremar Ferreira, do Comvida (Comitê de Defesa da Vida Amazônica), e de Vanessa Hasson e Fabiana Leme, advogadas e fundadoras da ONG Mapa-Caminhos para a Paz.

Elas dizem que a efetivação de uma lei como a de Guajará-Mirim ajuda não só a dar mais dispositivos jurídicos para a preservação e desenvolvimento do meio ambiente, mas também ajudam a consciêntizar a população sobre o tema.

"Quando você reconhece os direitos da natureza, você contribui para a ampliação de consciência de que há interdependência entre os seres da natureza, inclusive os seres humanos", afirma Hasson.

"Na argumentação jurídica, com esse tipo de lei você acrescenta à legislação que ferir esse rio é descabido em função de sua característica de ter direitos intrínsecos. É o direito do rio por ele mesmo, não por estar a serviço de algo", completa.

O texto legislativo, relatam, foi construído com a intenção de traduzir para o linguajar jurídico do homem não indígena o conhecimento e o entendimento cosmológico dos povos originários e tradicionais acerca da natureza.

"Os direitos da natureza são uma tradução jurídica das cosmovisões dos povos indígenas, tradicionais e originários. É empoderar essas comunidades de que é possível ter mais um instrumento legal ao lado deles", completa Leme.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

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