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A combinação climática que está secando os rios da Amazônia

Especialistas explicam os mecanismos por trás de uma das maiores secas da floresta amazônica

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Leandro Prazeres
Brasília | BBC News Brasil

As cenas são chocantes. Rios e igarapés secos e fumaça de queimada subindo pelo céu amazônico.

Focos de incêndio perto de Manaus
Estiagem prolongada seria um dos fatores contribuindo para incêndios - Alex Pazuello/Secom/Governo do Amazonas

Manaus, capital do Amazonas encravada no meio da floresta, ficou recentemente encoberta por uma nuvem espessa de fumaça causada por queimadas no entorno da cidade.

A pouco mais de 500 quilômetros dali, carcaças de botos espalhadas pelo leito seco de um lago no interior da Amazônia assustam e preocupam moradores.

Cientistas, ambientalistas e representantes do governo federal avaliam que esses dois eventos podem ter relação com um fenômeno que vem preocupando a comunidade científica e os milhões de habitantes da região: a estiagem severa que atinge a Amazônia, especialmente a chamada Amazônia Ocidental, composta pelos estados do Amazonas, Rondônia, Acre e Roraima.

A expectativa é de que essa seca possa ser a maior já registrada na região causando prejuízos ainda imprevisíveis.

Na segunda-feira (16), a medição do nível do rio Negro em Manaus registrou o ponto mais baixo desde 1902: 13,59 metros. Com isso, a seca neste local bateu o recorde da estiagem de 2010, considerada, até então, a maior da história.

Em outros rios importantes da região, como o Madeira, a vazante também já é a maior registrada.

O cenário inspira ainda mais preocupação porque a previsão é de que a temporada seca demore mais tempo que o habitual para acabar.

Mas o que estaria por trás dessa seca tão severa que estaria por trás da morte de botos e ligada à fumaça que cobriu Manaus nos últimos dias?

Biólogo mede boto morto
Pesquisadores fazem medição e coleta de tecidos de botos mortos em lago no município de Tefé - Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá

Causas

Secas e cheias são fenômenos normais na Amazônia. A região é cortada por rios gigantescos e é ocupada, em sua maior parte, pela floresta, que produz umidade em enormes quantidades e libera na atmosfera.

Com tanta água envolvida, por que a região está sendo afetada por uma estiagem tão severa? E quais os seus efeitos mais diretos sobre a natureza e a população que vive na Amazônia?

Cientistas ouvidos pela BBC News Brasil explicaram que a Amazônia tem um regime próprio de cheias e de seca.

Geralmente, a estação chuvosa vai de novembro a março, e a estação seca começa em abril e termina em meados de outubro.

Eles contam que, neste ano, a região está sendo afetada por dois fenômenos simultâneos que vêm contribuindo para a intensidade da estiagem.

O primeiro deles é o El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico. Esse fenômeno natural, que está ocorrendo de forma intensa, dificulta a formação de chuvas na Amazônia.

O El Niño teria, segundo os cientistas, afetado a estação chuvosa na Amazônia deste ano, que registrou índices pluviométricos abaixo da média. Com menos chuva, os rios entraram na estação seca com volume menor que o normal.

O segundo fenômeno afetando a Amazônia é o aquecimento anormal das águas do Oceano Atlântico, que também reduz a quantidade de chuva na região.

O pesquisador e meteorologista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, Giovanni Dolif, diz que ainda não é possível atribuir a ocorrência desses dois fenômenos às mudanças climáticas causadas pelo homem, mas a estiagem registrada neste momento é compatível com os modelos projetados em que há aumento da temperatura do planeta.

"Um único evento atmosférico é uma amostra pequena pra gente atribuir a um fenômeno de escala global, mas os estudos mostram que um planeta mais quente proporciona eventos extremos seja de seca como de inundações", disse o pesquisador à BBC News Brasil.

Dolif explica que as perspectivas são preocupantes porque os dados indicam que as chuvas podem demorar um pouco mais a chegar na região. Segundo ele, há o risco de que essa seca quebre o recorde da ocorrida em 2010.

"No final de setembro, o nível dos rios em diferentes pontos de medição da Amazônia Ocidental estava abaixo do mesmo período no ano em que tivemos o recorde. Com a perspectiva de que tenhamos chuvas abaixo da média nas próximas semanas, é possível que em alguns pontos de medição a gente atinja as mínimas históricas em alguns pontos da Amazônia", disse.

Manaus coberta de fumaça das queimadas
Na quinta-feira (120), Manaus amanheceu coberta de fumaça - Bruno Kelly/Reuters

Capital sob fumaça e botos mortos

Nos últimos dias, as consequências da estiagem começaram a ser sentidas em diferentes partes da Amazônia.

Em estados como o Acre, a seca vem afetando a vida de milhares de moradores da capital, Rio Branco, que precisam ser abastecidos com água potável por caminhões-pipa iguais aos que atuam no semiárido do Nordeste brasileiro.

Pelo menos 4.000 famílias na capital do Acre dependem desse serviço.

Além disso, as autoridades locais já estimam prejuízos na agricultura em culturas importantes para a região como a da mandioca, a piscicultura, entre outras.

Em Rondônia, outro estado afetado pela estiagem, o baixo nível do rio Madeira levou à suspensão temporária do funcionamento da usina hidrelétrica de Santo Antônio, uma das maiores do Brasil.

No Amazonas, 50 municípios —de um total de 62— já declararam situação de emergência.

Na semana passada, o governo federal anunciou um pacote de medidas para mitigar a situação que inclui a distribuição de mantimentos (comida e água potável) a populações afetadas e a dragagem de rios para permitir a navegação, principal meio de transporte na região.

A estimativa é de que pelo menos 451 mil pessoas já tenham sido afetadas, mas o governo estadual avalia que esse número possa mais que dobrar e chegar a 500 mil até o final do ano, caso as chuvas não comecem a cair na região.

A situação no Estado passou a chamar ainda mais atenção nesta semana por conta de uma nuvem de fumaça espessa que atingiu Manaus.

Segundo o portal G1, Manaus chegou a ter uma concentração de 499 µg/m3 de material particulado de até 2,5 micrômetros de diâmetro, conhecido pela sigla PM 2,5). A quantidade é cem vezes maior do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 5 µg/m3.

Em meio a esse cenário, escolas em Manaus abonaram faltas, cancelaram atividades externas como aulas de educação física e orientaram os alunos a utilizarem máscaras durante todo o dia.

Em entrevista coletiva realizada na sexta-feira (13), a ministra do Meio Ambiente e Mudança Climática, Marina Silva, disse que a fumaça que atinge Manaus é resultado de uma conjunção de fatores. Entre eles, estaria a seca prolongada.

"Há um cruzamento de três fatores. O primeiro deles é a grande estiagem provocada pelo El Niño que é agravada pela mudança do clima; matéria orgânica em grande quantidade ressecada; e ateamento de fogo em propriedades particulares e dentro de áreas públicas de forma criminosa", disse a ministra.

"O que nós temos hoje é uma situação bastante perigosa", alertou a ministra.

Dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) apontam que o número de focos de incêndio registrados no Amazonas nos primeiros 15 dias de outubro aumentou 94% na comparação com o mesmo período do ano passado. Entre 1º e 15 de outubro de 2022, foram detectados 1.503 focos. Em 2023, já foram 2.929.

Na mesma coletiva, o presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, disse que os incêndios que levaram fumaça a Manaus estariam ocorrendo em municípios relativamente próximos da capital como Autazes e Careiro.

A fumaça gerada por essas queimadas estaria sendo carregada pelo vento em direção à capital amazonense.

Agostinho anunciou o envio de 149 brigadistas de combate a incêndios (totalizando 289) florestais ao Amazonas, dois helicópteros, doação de equipamentos ao governo estadual e a transferência de pelo menos R$ 35 milhões para serem usados em ações contra as queimadas na região.

Dados do Sistema Eletrônico de Vigilância Ambiental (Selva), projeto mantido em parceria com a Universidade Estadual do Amazonas (UEA), apontava que a situação havia melhorado no domingo (15). Uma das estações de monitoramento localizada em Manaus indicava uma concentração de 90,8 µg/m3.

Mas não são apenas os seres humanos que estão sofrendo com a estiagem. Nos últimos dias, uma cena chamou atenção em Tefé, uma cidade a 570 quilômetros de Manaus, próximo ao rio Solimões.

Pelo menos 141 botos de diferentes espécies apareceram mortos nas areias do lago que banha a cidade em um espaço de menos de uma semana, segundo o Instituto Mamirauá, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Informações (MCTI), e que atua na região.

Cientistas afirmam que isso não tem precedentes na região.

"É uma coisa que nunca se viu antes, mesmo em outras secas extremas e que não se tem notícia em outros locais ou com outras espécies", disse à BBC News Brasil a pesquisadora Miriam Marmontel, especialista em mamíferos aquáticos e que trabalha no Instituto Mamirauá.

As causas das mortes ainda estão sendo investigadas, mas os indícios levam a crer que a estiagem tenha alguma relação com isso.

Impactos futuros

Apesar de esta seca ainda não ter registrado a máxima histórica, cientistas já se preocupam com os possíveis impactos futuros dessa estiagem. Eles temem que um agravamento do El Nino, por exemplo, atrase o início da estação chuvosa, diminuindo o nível dos rios no próximo ano, repetindo o ciclo de seca.

"Existe essa possibilidade. Isso poderia fazer com que os rios, que já estão com níveis abaixo das suas médias históricas, não recuperem seus níveis ao final da próxima estação chuvosa. Isso faria com que a gente entrasse a próxima estação seca com os rios já em níveis abaixo do normal", explica Giovanni Doliff, do Cemaden.

Miriam Marmontel, especialista em mamíferos aquáticos que acompanhou a morte de botos na Amazônia também tem esse temor.

"O panorama é muito sombrio se continuar nessa situação [...] é uma coisa que vai persistir nos próximos anos. A gente está vendo as mudanças climáticas e o aumento do calor. Isso vai se repetir", disse Marmontel.

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