Piroceno: Como a era dos megaincêndios está remodelando o mundo

Queimadas gigantes em florestas não só estão danificando os ecossistemas como transformando-os

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Emily Anthes
The New York Times

Em 15 de agosto, um pequeno incêndio foi detectado nas colinas acima de West Kelowna, na Colúmbia Britânica, no Canadá. A paisagem estava seca, e o vento, forte. Nos dias seguintes, o modesto incêndio se transformou em uma conflagração furiosa.

Ele se espalhou pelo vale em direção ao lago Okanagan. O vento soprou brasas por cima da água, provocando novos incêndios ao redor da cidade de Kelowna.

"Eu quase não dormi na noite em que os incêndios de West Kelowna atravessaram o lago", disse Karen Hodges, que mora em Kelowna. "Eu podia ver os incêndios da minha janela. E então ficava pensando nas pessoas que conheço no vale e onde ficavam suas casas."

Hodge, ecologista conservacionista da Universidade de British Columbia Okanagan, também se viu preocupada com a vida selvagem. Ela vinha estudando corujas ocidentais que fazem ninhos bem no local que estava no coração daquele incêndio rápido e avassalador. "Um fogo nessa velocidade seria difícil para os animais evacuarem", disse ela.

Veado em meio a chamas e fumaça de um incêndio
Piroceno, como cientistas chamam a era dos megaincêndios, coloca em risco sobrevivência de animais e plantas - Hokyoung Kim/The New York Times

As corujas conseguiram escapar a tempo? E depois da pior temporada de incêndios florestais já registrada no Canadá, o que restaria para os sobreviventes?

O fogo é um fenômeno natural: algumas espécies realmente se beneficiam de seus efeitos e até mesmo aquelas que não se beneficiam podem ser notavelmente resilientes diante das chamas. Mas, à medida que os incêndios se intensificam, eles estão começando a superar a capacidade da natureza de se recuperar.

"Nem todos os incêndios têm o mesmo impacto", disse Morgan Tingley, ecologista da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles). "Esses megaincêndios não são bons para os ecossistemas."

Megaincêndios, que são muito maiores do que os incêndios florestais típicos, têm um impacto ecológico imediato, matando plantas e animais que poderiam ter sobrevivido a incêndios mais contidos. A longo prazo, as mudanças nos padrões de incêndio podem levar algumas espécies à extinção, transformar paisagens e remodelar completamente os ecossistemas.

Essa era incendiária, que alguns cientistas chamam de Piroceno, poderia levar a "uma transformação em massa dos hábitats que existem no planeta", disse Hodges. "Atualmente, todos estão falando sobre incêndios e fumaça e quem morre, devido à imediatez deste ano de incêndios. Mas, na realidade, as consequências de longo prazo são muito mais graves e duradouras."

Coruja em meio a chamas de incêndio
Corujas estão entre os animais ameaçados pelos incêndios florestais - Hokyoung Kim/The New York Times

Sobrevivendo às chamas

O fogo tem sido um fenômeno planetário por centenas de milhões de anos, e as plantas e animais que evoluíram em regiões propensas a incêndios se adaptaram a queimadas periódicas. Algumas árvores possuem raízes que podem rebrotar mesmo se o tronco queimar, enquanto o simples cheiro de fumaça despertará alguns animais do torpor, uma forma de hibernação leve.

Mas, em muitas regiões e ecossistemas, os incêndios estão se tornando maiores e mais graves. Nos Estados Unidos, os incêndios florestais queimam muito mais terras hoje do que há três décadas, especialmente nos estados do oeste.

Globalmente, o risco de incêndios catastróficos pode aumentar em mais de 50% até o final do século, conforme relatado pelas Nações Unidas.

A mudança climática é em parte culpada, disseram os cientistas, mas também existem outros fatores, como a expansão de gramíneas invasoras altamente inflamáveis, que ajudaram os incêndios mortais em Maui, no Havaí, a se espalharem tão rapidamente.

Mais de um século de supressão de incêndios também deixou algumas florestas densas de árvores, fornecendo mais combustível para as chamas. "Quando os incêndios chegam, queimam com maior intensidade", disse Chris French, vice-chefe do Sistema Nacional de Florestas dos Estados Unidos.

Mesmo organismos adaptados ao fogo podem ser derrotados. No norte da Austrália, os lagartos de crista podem sobreviver a incêndios de baixa intensidade se escondendo na copa das árvores. Mas, durante incêndios severos, quando as chamas se elevam, os lagartos que utilizam essa estratégia podem perecer.

Os incêndios também estão se espalhando para ecossistemas onde as chamas são uma ameaça desconhecida. Os megaincêndios que eclodiram na Austrália em 2019 e 2020 queimaram as florestas tropicais do país, que continham muitas plantas que não conseguem se regenerar após a queima.

Incêndios que consomem mais combustível também podem produzir mais fumaça por unidade de área queimada, ameaçando animais distantes das chamas. "Todos os animais que respiram ar serão afetados pela exposição à fumaça, porque as substâncias químicas presentes na fumaça são tóxicas", disse Olivia Sanderfoot, ecologista da UCLA.

A inalação de fumaça pode causar mais do que problemas respiratórios. Meses após incêndios graves em turfeiras produzirem poluição do ar recorde na Indonésia em 2015, os orangotangos de Bornéu vocalizaram com menos frequência e suas vozes se tornaram mais ásperas.

Das cinzas

Os animais que sobrevivem ao inferno devem então encontrar comida, água e abrigo em paisagens quentes, secas e despojadas, onde o risco de predação é alto. (Cercados por presas enfraquecidas, alguns predadores prosperam após incêndios.)

Felizmente, os incêndios tendem a queimar de forma desigual, devastando algumas áreas de árvores enquanto poupam outras. Essas ilhas não queimadas podem ser uma salvação para espécies sensíveis ao fogo, como o caribu, que se alimenta de líquen altamente inflamável, além de árvores de casca fina. Mas alguns dos incêndios de hoje estão deixando menos desses oásis.

"Você pode andar meio quilômetro e não verá uma única árvore viva", disse Andrew Stillman, ecologista do Laboratório de Ornitologia da Universidade Cornell. "Cada vez mais, esses incêndios parecem criar condições de hábitat que estão fora das normas às quais essas espécies estão adaptadas."

Isso pode ser verdade até mesmo para animais que gostam de fogo, como o pica-pau-de-dorso-preto. As aves constroem ninhos em árvores queimadas e se alimentam das larvas de besouros que colonizam os troncos carbonizados. No entanto, Stillman e Tingley descobriram que eles preferem áreas de árvores queimadas próximas a áreas de árvores vivas e frondosas, que protegem seus filhotes de serem capturados por predadores.

Após o enorme incêndio Rim na Califórnia em 2013, os cientistas procuraram os pica-paus em quase 500 locais na extensa área queimada. Eles encontraram apenas seis pássaros. "Mesmo que tenha criado todo esse ótimo habitat queimado, não era o tipo certo de habitat queimado", disse Tingley.

Menos aglomerados de árvores vivas também podem reduzir o crescimento novamente. "Em muitos lugares, não estamos obtendo regeneração porque a fonte de sementes foi perdida", disse French, do Sistema Nacional de Florestas. "Honestamente, parece que alguém entrou e simplesmente detonou uma bomba."

O solo queimado e sem vegetação, que não absorve bem a chuva, também pode dificultar a regeneração. Inundações repentinas após incêndios podem levar cinzas e sedimentos para rios e córregos, poluindo a água, matando peixes e alterando o curso dos cursos d'água.

Extinção e evolução

Nos Territórios do Noroeste do Canadá, incêndios repetidos transformaram completamente algumas florestas. Em um lugar, os imponentes pinheiros-jack deram lugar a gramíneas e a alguns "choupos pequenos e arbustivos" que possuem sementes leves que podem ser carregadas pelo vento, disse Ellen Whitman, cientista que pesquisa incêndios florestais no Ministério de Recursos Naturais do Canadá.

"É um lugar muito diferente", acrescentou ela.

A mudança não é necessariamente ruim. Incêndios podem promover uma regeneração atrasada em lugares onde as chamas foram artificialmente suprimidas, e as florestas não são inerentemente superiores a outros ecossistemas.

As pradarias antigas, que são pontos de biodiversidade, também estão ameaçadas; em alguns lugares, as pradarias se transformaram em florestas, em parte devido à supressão de incêndios. "Então talvez, de certa forma, um pouco de equilíbrio esteja sendo restaurado", disse Whitman.

Mas pode levar muito tempo para que novas áreas de pastagem desenvolvam biodiversidade, e as transformações na paisagem têm efeitos em cascata.

Na amazônia, parcelas de floresta sujeitas a incêndios frequentes começaram a se assemelhar a savanas; nesses locais, cientistas descobriram que formigas e borboletas que preferiam florestas diminuíram, enquanto espécies que preferem hábitats abertos se estabeleceram.

Hoje o aumento da atividade de incêndios pode levar mais de mil espécies de plantas e animais a ficarem ameaçadas, à beira da extinção, calcularam os cientistas. E muitas plantas e animais já estão enfrentando múltiplos fatores de estresse.

No Canadá, as corujas-orelhudas-ocidentais estão ameaçadas pelo desmatamento e pela expansão das corujas-barradas invasoras.

"Então você toca fogo em cima disso, como algo adicional que mata alguns deles, estressa outros e muda o hábitat —sabe, de repente você tem muito com que lidar", disse Hodges.

O incêndio em West Kelowna queimou algumas das árvores onde as corujas fazem seus ninhos, disse ela, e a perspectiva é sombria para uma jovem ave marcada com GPS que um de seus alunos estava rastreando.

"A última localização conhecida dela foi bem no meio do incêndio que se espalhou tão rapidamente", disse Hodges. "E não detectamos o sinal desde então."

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