Derretimento de glaciares na Suíça ameaça modo de vida tradicional

Aquecimento global ameaça a 'caixa d'água da Europa', forçando os agricultores locais a se adaptarem

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Catherine Porter
The New York Times

Há séculos, os agricultores suíços enviam seu gado, cabras e ovelhas para pastar montanha acima nos meses mais quentes, antes de trazê-los de volta no início do outono.

Criada na Idade Média para economizar a preciosa grama dos vales para o inverno, a tradição do "veraneio" transformou a paisagem do interior em um mosaico de florestas e pastagens, a tal ponto que a manutenção de sua aparência foi inserida na Constituição Suíça como um papel essencial da agricultura.

A prática também uniu fios essenciais da identidade moderna do país: queijos alpinos, trilhas de caminhada que cruzam pastagens de verão, sinos de vaca ecoando nas encostas das montanhas.

Em dezembro, a Unesco, agência da ONU para educação, ciência e cultura, adicionou a tradição suíça à sua exaltada lista de "patrimônio cultural imaterial".

Mas as mudanças climáticas ameaçam desorganizar essas tradições. Temperaturas mais altas, a perda de glaciares, menos neve e um derretimento mais precoce da neve estão forçando os agricultores em toda a Suíça a se adaptarem.

Pastor conduz gado montanha abaixo
O gado é retirado das pastagens alpinas de verão perto de Engstligenalp, Suíça - George Steinmetz - 2.set.2023/The New York Times

Nem todos estão sentindo as mudanças da mesma maneira em um país onde os Alpes criam muitos microclimas. Alguns estão tendo maiores rendimentos nas pastagens de verão, permitindo-lhes estender suas temporadas alpinas. Outros estão sendo forçados por secas mais frequentes e intensas a descer mais cedo com seus rebanhos.

Quanto mais evidente o efeito nos suíços, mais problemas potenciais isso representa para toda a Europa.

A Suíça tem sido considerada há muito tempo a caixa d'água da Europa, o lugar onde as neves profundas do inverno se acumulam e derretem suavemente durante os meses mais quentes, aumentando o escoamento das geleiras espessas que ajudaram a sustentar muitos dos rios e dos modos de vida da Europa por séculos.

Hoje, os Alpes estão aquecendo cerca de duas vezes mais rápido do que a média global, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Só nos últimos dois anos, os glaciares suíços perderam 10% de seu volume de água —quantia equivalente ao que derreteu de 1960 a 1990.

Desde que começou a estudar o Glaciar do Ródano em 2007, Daniel Farinotti, um dos principais cientistas de glaciares da Europa, viu-o recuar cerca de meio quilômetro e afinar, formando um grande lago glacial em sua base.

Ele também viu o glaciar —que se estende por cerca de 9 quilômetros, perto da cidade de Realp— ficar preto à medida que a neve protetora do inverno derrete e revela a poluição anos anteriores em um ciclo vicioso.

"Quanto mais escura a superfície, mais luz solar ela absorve e mais derretimento é gerado", disse Farinotti, que leciona na ETH Zurich e lidera um curso de verão no glaciar.

Para chegar ao glaciar a partir da estrada, seus alunos atravessam montes de lonas brancas, esticadas ao redor de uma caverna de gelo esculpida para turistas. As lonas podem reduzir o derretimento anual em até 60%, mas cobrem apenas uma porção minúscula das geleiras e em lugares como pistas de esqui, onde há um incentivo financeiro privado.

"Você não pode cobrir um glaciar inteiro com isso", disse Farinotti, que também trabalha para o Instituto Federal Suíço de Pesquisa Florestal, Neve e Paisagem.

Vista aérea de grupo de pesquisadores caminhando por uma parte da geleira coberta com lonas para retardar o derretimento
Equipe da universidade ETH Zurich caminha por uma parte da geleira Ródano coberta com lonas para retardar o derretimento - George Steinmetz - 23.ago.2023/The New York Times

O governo está tentando lidar com as mudanças e preservar as tradições alpinas suíças, inclusive com grandes projetos de infraestrutura para levar água ao topo das montanhas para animais que pastam lá nos meses de verão.

Por enquanto, as tradições, embora desgastadas em alguns lugares, continuam. Depois de três dias escalando encostas rochosas e subindo degraus de pedra em zigue-zague, as primeiras ovelhas de um rebanho gigante de quase 700 surgiram no horizonte, no final de seu "veraneio" no outono passado (no Hemisfério Norte, o outono começa em setembro).

Enquanto uma multidão de espectadores aplaudia, algumas ovelhas saltitavam. Outras paravam de repente e tinham que ser persuadidas pelos pastores com camisas xadrez e chapéus de couro, adornados com flores silvestres e penas.

As ovelhas tinham vivido soltas por mais de três meses —vagando por uma vasta e alta região selvagem cercada por geleiras. Seu único contato com a humanidade tinha sido as visitas de um único pastor, Fabrice Gex, que diz perder mais de 13kg por temporada caminhando pelo território para verificar como elas estão.

"Eu trago sal, biscoitos e amor para elas", disse Gex, 49.

"Com as mudanças climáticas, nosso período de vegetação é mais longo", disse o pastor André Summermatter, 36, em pé no antigo curral de pedra onde as ovelhas são cercadas no final de sua jornada. "Então as ovelhas podem ficar mais tempo."

A tradição do pastoreio alpino, ou "transumância", se espalha por toda a região dos Alpes, incluindo Áustria, Itália e Alemanha.

Quase metade das fazendas de gado da Suíça enviam suas cabras, ovelhas e vacas para pastagens de verão, de acordo com o último estudo completo realizado por cientistas do governo, em 2014.

Mais de 80% da renda das fazendas alpinas vem de subsídios do governo —muitos deles para manter as pastagens livres de árvores invasoras, que estão se movendo mais para cima com o aumento das temperaturas.

Isso faz da Suíça um raro país que não adota a cobertura arbórea como solução para as mudanças climáticas.

"Seria tudo arbustos e floresta se não estivéssemos aqui", disse Andrea Herger, conduzindo vacas pastando até o celeiro de ordenha de sua família, no meio de uma montanha perto de Isenthal. "Não seriam essas paisagens abertas e bonitas para caminhadas."

Seu marido, Josef Herger, é a terceira geração de sua família a administrar sua fazenda de verão alpina, que é alcançada por um teleférico privado. Eles trazem sete vacas de sua própria fazenda e 33 vacas de vizinhos, que os pagam com leite de vaca que o casal usa para fazer queijo.

Mais a oeste, perto de L'Etivaz, a família Mottier conduz 45 vacas ao longo do que eles chamam de "trem da montanha", seguindo a grama recém-brotada até um pico de 2.030 metros e depois voltando para pastar na segunda leva de crescimento das gramíneas. A partir de maio, eles fazem cinco viagens, parando em três níveis.

Perto do pico, Benoît Mottier, 24 anos, subiu em um afloramento de calcário, decorado com as iniciais de pastores ociosos e os anos em que as esculpiram. A mais antiga que ele encontrou foi deixada nos anos 1700 por alguém com suas iniciais —B.M.

Ele é a quinta geração de sua família a levar vacas para lá.

Os Mottiers são uma das 70 famílias da região que produzem um queijo suíço tradicional chamado L'Etivaz. Eles seguem regras rígidas —aquecendo lentamente o leite fresco em um grande caldeirão de cobre sobre uma fogueira de madeira de abeto. Depois que o queijo é prensado, eles o levam para uma cooperativa local, onde é envelhecido e vendido.

L'Etivaz só pode ser feito nas encostas das montanhas locais por seis meses do ano. A tradição é tão importante que as crianças de famílias agrícolas locais podem sair da escola mais cedo nas férias de verão para ajudar.

"No início da temporada, estamos felizes em começar", disse Isabelle Mottier, mãe de Benoît. "No final da temporada, estamos felizes que esteja terminando."

"Para nós, é uma vida de ciclos", disse ela.

A fazenda de verão dos Mottier recebe água de uma nascente. Secas nos últimos anos forçaram a família a se adaptar.

"Uma vaca bebe de 80 a 100 litros de água por dia", explicou Isabelle Mottier. "Temos mais de 40 vacas. Precisamos de uma quantidade enorme de água."

Em 2015, durante uma onda de calor, a nascente secou. Três anos depois, outra onda de calor e seca atingiram. E novamente em 2022.

Durante as secas, o exército suíço entregou água às pastagens alpinas usando helicópteros. No entanto, os Mottiers não tinham tanques para armazená-la.

Então eles instalaram uma bomba movida a energia solar para retirar água de uma nascente mais baixa e compraram uma grande bolsa de água para armazenar o derretimento da neve no início da temporada.

A situação deve piorar à medida que os glaciares recuam. Os maiores glaciares do país, incluindo o Aletsch e o Ródano, devem encolher pelo menos 68% até o final do século.

Antecipando isso, o governo suíço quadruplicou o financiamento para projetos de água alpina. Em 2022, foram aprovados 40.

Perto da vila de Jaun, uma equipe de construção estava instalando tubos para fornecer eletricidade e água de um novo reservatório para seis fazendas locais. Em 2022, algumas famílias trouxeram seus rebanhos de vacas montanha abaixo um mês antes devido à seca e ao calor.

Em outras regiões, as temperaturas mais quentes estão tornando os campos mais produtivos, disse Manuel Schneider, cientista do Agroscope, instituto de pesquisa nacional do governo suíço, que está liderando um estudo de cinco anos sobre biodiversidade e rendimentos de pastagens alpinas.

Essa variabilidade, no entanto, pode ocorrer até mesmo em uma única montanha, disse ele. Agricultores com estações de ordenha móveis podem aproveitar essa "heterogeneidade em pequena escala" levando suas vacas —e suas máquinas de ordenha— para áreas menos secas.

"Quando o clima está mudando, você precisa de flexibilidade", disse Schneider.

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