Sobrevivente de massacres, povo indígena juma, do Amazonas, agora enfrenta mudanças climáticas

Aldeia com apenas 24 pessoas observa calor aumentar e rios secarem de forma inédita

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Vista de drone de floresta e rio

Terra Indígena Juma, no Amazonas Puré Juma

Dannie Oliveira Puré Juma
Santarém (PA) e Terra Indígena Juma (AM)

Às margens do rio Assuã, em um campo de terra batida, a jornada da vida amazônica segue resiliente em meio a uma das secas mais severas dos últimos anos na região.

O sol está mais quente, o clima mais seco e o vento traz o cheiro das queimadas em algum lugar não tão longe dali. Até o igarapé da Anta não está como antes. "Está assim por causa da derrubada. A água não enche mais, não chega no limite como antes, já não está mais tão natural", afirma a liderança indígena Mandeí Juma.

"Antigamente não era assim. A gente tem adoecido mais por causa da quentura, da fumaça, por causa da água. Tanto criança como adulto tem pegado doença, tem pegado gripe e não sei como a gente vai ficar", diz.

Dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) apontam que o estado do Amazonas registrou 3.900 focos de queimadas somente no mês de outubro, a pior taxa dos últimos 25 anos. O El Niño, fenômeno climático que afeta os padrões atmosféricos globais, acabou contribuindo para uma situação favorável à expansão dos incêndios florestais, sobretudo nas áreas onde já havia focos de desmatamento.

Vista de drone de casas no meio da floresta
Aldeia da Terra Indígena Juma, no Amazonas - Puré Juma

Em 2023, todos os nove países da bacia amazônica experimentaram os menores índices de chuva dos últimos 40 anos durante os meses de julho a setembro, conforme pesquisa recente do Centro Científico da União Europeia.

Essa condição impactou negativamente os rios e a biodiversidade, especialmente nas cabeceiras dos rios Solimões, Purus, Juruá e Madeira, abrangendo a região centro-sul do estado do Amazonas, onde fica o povoado dos jumas, no município de Canutama.

"A gente vem enfrentando muito calor, e o rio tem ficado mais seco. Nunca chegamos a ver desse jeito. Já é dezembro e a água nem começou a encher, e já vem a preocupação grande", contou à Folha Mayta Juma, vice-cacique do povo juma e uma das integrantes do Departamento Regional da Opiam (Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira).

"Antigamente morávamos na floresta e não era assim, a água era normal. Mudou muito, até quando vamos banhar é quente. Vejo que a cada ano o desmatamento tem aumentado e as queimadas também."

A maloca tradicional, uma escola de madeira, cinco residências e uma casa de farinha formam a aldeia Juma, que é rodeada pelas pequenas plantações de mandioca e banana.

O acesso ao território é feito pelo rio Assuã, afluente do rio Purus, em uma viagem que leva cerca de uma hora partindo da ponte na BR-230 (a rodovia Transamazônica) até o igarapé da Anta, que margeia o núcleo populacional. Da beira do curso d'água, é preciso caminhar mais cerca de 500 metros até chegar ao povoado.

A aldeia conta com gerador que funciona apenas algumas horas, e o sinal de internet na região oscila.

Não existem estradas. Os únicos caminhos são as trilhas no meio da mata que os indígenas usam para chegar até as castanheiras e também para caçar o caititu, a paca, o nambu, o mutum e a anta.

Tudo ali é lugar sagrado para os 24 indígenas que formam as seis famílias da etnia, que hoje habitam uma das regiões mais tensas da Amazônia Ocidental.

"Os jumas que viviam no rio Assuã foram massacrados pelos fazendeiros locais que queriam aquelas terras, que queriam as riquezas e viam aquelas pessoas como ameaças para os seus interesses", conta a antropóloga Luciana França, que conviveu com o grupo indígena nos anos 2000.

"É um caso de genocídio como tantos outros, mas esse foi documentado e chegou a ser judicializado. Antes de 1998, eles eram cerca de dez pessoas", completa.

As doenças, os ataques de animais e conflitos fizeram com que a etnia chegasse muito perto de desaparecer. Com esse risco tão iminente, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) transferiu, na década de 90, os setes jumas sobreviventes para a aldeia Uru-Eu-Wau-Wau (Jupaú) Alto Jamari, no município de Governador Jorge Teixeira, no estado de Rondônia: o cacique Aruká, suas filhas Boreá, Mayta e Mandeí, além dos anciãos Ité e Arimã.

"Em 1998, eles [jumas] começaram a querer se juntar com outros povos indígenas. Eles sabiam da existência desses povos, porque, anos antes, houve pequenas incursões da Funai em que os agentes levaram como mediadores alguns indígenas Uru-Eu-Wau-Wau", lembra França.

"Houve essa ideia de se associar a esses indígenas, já que a língua deles, o kagwahiva, é do mesmo tronco linguístico e na aldeia do Alto Jamari havia muitos homens e poucas mulheres. Os jovens Uru-Eu-Wau-Wau se entenderam com as jumas e decidiram se casar. Elas sabiam que ficando sozinhas a etnia ia acabar desaparecendo."

Em 2004, o governo federal demarcou e homologou oficialmente a Terra Indígena Juma mesmo sem a presença dos habitantes tradicionais. No entanto, a área de 38.351 hectares ficou sem cuidados por muito tempo, o que a tornou vulnerável à grilagem de terras, roubo de madeira, desmatamento e a entrada de pescadores e caçadores ilegais.

Aruká Juma pressionou a Funai e, em 2008, após uma ação do Ministério Público Federal contra o órgão indigenista, a Justiça Federal ordenou que ele garantisse o retorno dos jumas à reserva em Canutama (AM), vindo da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau.

A Funai e a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé acompanharam a retomada dos jumas do seu território, o que só aconteceu de forma definitiva em 2012.

As viagens foram desafiadoras. "Era bem difícil, muitas vezes o caminhão atolava. Foram várias viagens durante um ano", diz Israel Vale, coordenador de monitoramento e proteção territorial da Kanindé Etnoambiental, que hoje emprega drones para combate ao desmate na região.

"Em uma viagem, abriam um roçado, em outra limpavam onde ia ficar a aldeia. Esse processo levou uns dois anos entre idas e vindas, até conseguirem construir as casas e, por fim, irem morar em definitivo na terra Juma."

Passada uma década, o povo juma enfrenta novos desafios —além da constante pressão de grilagem, desmatamento, caça e pesca ilegais.

"Essa mudança climática, a seca deste ano, o atraso da chuva afetaram bastante a aldeia, que depende do plantio do milho e da mandioca para subsistência e para a comercialização. Está tudo desregulado e a preocupação é como vai ser isso no ano que vem", afirma Vale.

Mayta questiona-se para ainda mais além. "A gente tem muita preocupação com a floresta e com o território. Tenho visto muito o avanço do desmatamento, da queimada que está chegando, dos problemas de saúde. Tenho medo do não indígena tomar tudo", diz.

"Tenho medo de não ter nosso território sagrado, nosso cemitério, a terra indígena para as minhas filhas e meus netos. Falo isso para a minha comunidade, para o movimento: como será daqui um mês, daqui 30 e poucos anos? Como será o nosso futuro?"

Esta reportagem é parte do Programa de Microbolsas Jornalismo Tapajós, parceria do Laboratório de Comunicação Amazônia, do Projeto Saúde e Alegria e da Folha para estimular a produção jornalística de jovens profissionais da Amazônia.

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