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Indústria do plástico escondeu limitações da reciclagem e gerou crise ambiental, diz estudo

Documentos reunidos por ONG sugerem que setor investiu em projetos ligados a lixo para evitar regulação; OUTRO LADO: Associações veem inconsistências no relatório

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São Paulo

A indústria do plástico escondeu informações sobre a real viabilidade da reciclagem como solução para os milhões de toneladas de resíduos plásticos descartados todos os anos, o que garantiu a expansão de seus mercados ao mesmo tempo em que gerou uma crise ambiental.

É isso o que afirma um estudo da ONG norte-americana CCI (Center for Climate Integrity), lançado neste mês, que mobilizou o setor petroquímico (o chamado "Big Oil"), a indústria de transformação plástica e associações de reciclagem nos EUA, assim como no Brasil. Todos são críticos às principais conclusões do relatório, intitulado "A Fraude da Reciclagem de Plástico" e celebrado por ambientalistas.

A Abiplast (Associação Brasileira do Plástico) diz que o estudo tem inconsistências, sem especificá-las.

Pedaços de plástico coloridos e peixes vistos em um bloco de gelo
Pedaços de plástico em água congelada em Vaasa, na Finlândia - Olivier Morin - 30.nov.2022/AFP

O estudo traz documentos inéditos da indústria do plástico nos EUA que indicam limites da reciclagem deste tipo de material já apontados por investigações anteriores às quais o CCI faz referência. São relatórios internos, apresentações de conferências do setor e notas de um funcionário do Conselho Americano do Plástico, uma das principais entidades comerciais dos anos 1980 e 1990.

Os documentos do setor citam dificuldades de recuperação do material descartado e a baixa demanda por resina plástica reciclável, por causa da degradação do material frente às exigências de pureza e de qualidade estabelecidas para muitas aplicações.

Eles indicam também que a incineração de resíduos plásticos para a produção de energia era considerada um caminho mais lógico, ainda que ecologicamente controverso, e que, diante do aumento da consciência ambiental e de iniciativas regulatórias, a reciclagem precisava de investimento do setor para evitar o surgimento de leis mais restritivas ao material.

Uma dessas iniciativas foi a criação, pela Sociedade da Indústria Plástica dos EUA, em 1988, de códigos para diferenciar algumas das várias composições de resina plástica. São números de 1 a 7 envoltos no símbolo da reciclagem —um triângulo formado por três setas no sentido horário.

Pareceres contrários argumentam que a iconografia sugeria que aquele material era reciclado ou seria reciclado, quando não havia esse compromisso nem a viabilidade econômica para a implementação da reciclagem de toda a variedade de plásticos indicados junto ao símbolo das setas.

"Essas fontes, juntas, são evidências convincentes de que essa indústria tinha consciência de que a reciclagem não era uma solução viável para o problema da poluição plástica", diz à Folha Davis Allen, investigador do CCI e principal autor do estudo.

"Sabia-se que a reciclagem do plástico não era tecnicamente nem economicamente viável diante a escala do problema. E, ao promover essa falsa promessa, a indústria enganou consumidores e legisladores para proteger e expandir seus mercados e, ao mesmo tempo, conter as iniciativas regulatórias, em especial aquelas contra a disseminação de plásticos de uso único."

Após mais de 30 anos de promoção da reciclagem, estima-se que apenas 9% do plástico descartado globalmente sejam, de fato, reciclados. No Brasil, estudo da ONG WWF, baseado em dados do Banco Mundial, afirma que, em 2019, apenas 1,3% foi reciclado.

Já o Índice de Reciclagem Mecânica Pós-Consumo, iniciativa da Abiplast, indica que a reciclagem foi de 25,6% em 2022.

"Durante anos, diversas iniciativas e políticas públicas foram meticulosamente elaboradas em prol da reciclagem de plástico, sendo essencial reconhecer esse esforço", afirma, em nota, o presidente da Abiplast, Paulo Teixeira, que acusa o relatório do CCI de "inconsistências", sem detalhá-las.

"Empresas de renome, como Coca-Cola e Unilever, estabeleceram metas específicas em relação ao tema, evidenciando que qualquer empreendimento ambiental não deve ser subestimado ou desqualificado", avalia ele.

Também procurada, a Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química), que reúne as petroquímicas, diz, em nota, que a gestão do plástico é um tema de interesse da indústria química e que entende que a poluição plástica está ligada à má gestão de resíduos, como o descarte incorreto.

Segundo o presidente-executivo da Abiquim, André Passos Cordeiro, as empresas da entidade vêm investindo em produtos feitos a partir de fontes renováveis, resinas termoplásticas produzidas a partir de plástico reciclado, pesquisas de processos de reciclagem química, geração de energia a partir de fontes renováveis e metodologias para auxiliar clientes a desenvolverem embalagens mais sustentáveis.

Leve e barato, versátil e durável, o plástico é o material dominante na economia contemporânea. Fabricado a partir de combustíveis fósseis, o plástico teve um salto de produção de 1,5 milhão de toneladas em 1950 para 460 milhões de toneladas em 2019. Projeções estimam que esse montante deve pelo menos dobrar até 2060.

Embalagens plásticas boiando na água
Poluição no canal das Tachas, no Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste do Rio de Janeiro - Tércio Teixeira - 19.mar.2021/Folhapress

Com isso, escalou também a produção de lixo, o que tornou o descarte do plástico "uma grande ameaça aos ecossistemas", como classificou a ONU. A organização prevê concluir neste ano o Tratado Global Contra a Poluição Plástica.

"O que estamos percebendo agora é que a sequência relativamente simples de coletar, separar, classificar, triturar, limpar e refabricar pode ter utilidade para reciclar uma parte significativa do fluxo de resíduos plásticos, mas não parece ser algo amplamente aplicável para o manejo do lixo plástico", escreveu em 1992 um gerente de tecnologia da DuPont, uma das maiores empresas químicas do mundo, em documento reproduzido pelo CCI.

De acordo com o relatório da ONG, as diversas composições plásticas que existem no mercado são um primeiro entrave à reciclagem, pois cada tipo tem um processamento específico. Além disso, cada vez mais embalagens plásticas são produzidas com camadas de outros materiais, o que dificulta ou mesmo inviabiliza sua separação.

Com essa complexidade técnica, ainda que as diferentes composições de plástico sejam potencialmente recicláveis, na prática, muitas delas não o são, afirma o relatório.

Pesa, ainda, a questão econômica. Segundo o estudo, os custos dos processamentos seguem altos e o produto resultante tem menor qualidade e aplicação restrita. Desse modo, a resina plástica virgem, obtida diretamente dos combustíveis fósseis, costuma ser mais barata do que a resina plástica reciclada.

"Toda a cadeia produtiva do plástico tem culpa, em algum grau, por essa fraude. Mas são as empresas petroquímicas, de petróleo e de gás, que mais usaram a falsa promessa de reciclagem para aumentar exponencialmente a produção de resina virgem", afirma Allen, para quem a promessa da reciclagem criou um crise global de resíduos plásticos e impôs custos significativos a governos locais e comunidades responsáveis pelo manejo de resíduos.

No Brasil, o Planares (Plano Nacional de Resíduos Sólidos), de 2022, estabelece metas de reciclagem para embalagens plásticas, que serão elevadas para 30% em 2024, com vistas a atingir 50% em 2040.

Para a gestora ambiental Isabella Vallin, do Núcleo de Pesquisa em Organizações, Sociedade e Sustentabilidade da USP (Universidade de São Paulo), a medida ainda é insuficiente. "Ainda que a indústria recicle 30% do resíduo plástico, isso é pouco significativo frente ao volume gerado pela indústria, com grande impacto ambiental."

Segundo a engenheira Tereza Cristina Melo de Brito Carvalho, coordenadora do Laboratório de Sustentabilidade da Poli-USP, o plástico não é um vilão, mas deveria ter seu uso descartável restrito a áreas essenciais, como a saúde.

"É uma questão profunda porque o plástico permeia embalagens, vestimenta, mobiliário e quase toda a sociedade moderna. E, por isso, temos tantos aglomerados econômicos interessados em proteger essa indústria e em não reconhecer certas informações [como as do estudo do CCI]."

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