Criação de salmão no Chile polui água de rios

Fazendas do peixe danificam os ecossistemas e ameaçam a vida selvagem nativa, dizem ativistas

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Lucy Meyer e Casey Ann Smith
The New York Times

O mar está calmo e o crepúsculo escurece a ilha de Quinchao, no sul do Chile, onde nasceu o oceanógrafo aposentado Tarsicio Antezana. Ao longe, vulcões cobertos de neve adquirem um tom violeta profundo, acompanhando o pôr do sol.

É uma visão serena, mas há uma coisa que Antezana sabe: não muito longe da terra, mergulhada na água, uma faixa de pequenos objetos retangulares se estende pelo mar, balançando levemente ao sabor da maré. São estruturas que, mesmo não parecendo grande coisa, sustentam uma fazenda de criação de salmão abaixo da superfície.

Fora da visão de quem está olhando o mar, abaixo da água, gaiolas feitas com rede de alta densidade estão repletas de milhares de salmões. Fazendas como essas são comuns em Los Lagos, a principal região de aquicultura do Chile.

O país sul-americano é o maior exportador para os Estados Unidos de salmão criado em viveiro. Mas esses peixes populares não são nativos da região. Ambientalistas e ativistas há muito tempo reclamam que as fazendas danificam os ecossistemas chilenos e ameaçam a vida selvagem nativa.

A imagem mostra uma seção de um mercado de peixes, com várias bancadas de venda. Há peixes expostos em fileiras, incluindo peixes inteiros e filés. Ao fundo, há placas com a palavra 'PESCADERIA' e outros detalhes visuais. O ambiente é bem iluminado, com prateleiras e utensílios de mercado visíveis.
Salmão em uma barraca no mercado turístico de Angelmo em Puerto Montt, ao longo da costa sul do Chile - Marcos Zegers /NYT

A criação de salmão em larga escala começou no Chile na década de 1970. Antezana era um jovem cientista na época e foi convidado para avaliar a viabilidade da criação do peixe. Aconselhou o governo a fazer estudos de base e ter cuidado com riscos ecológicos e para a saúde humana.

Por mais de quatro décadas, Antezana viu a indústria crescer e se tornar uma das maiores produtoras mundiais de salmão de viveiro. No ano passado, o salmão criado em fazendas foi o segundo maior produto de exportação do Chile, gerando US$ 6,5 bilhões em receita.

É uma história de sucesso econômico na qual consumidores dos EUA desempenham um papel de liderança, comendo mais salmão chileno do que nunca; 2022 foi um ano recorde, de acordo com o Departamento de Agricultura dos EUA. A maior parte do salmão de viveiro consumido nos Estados Unidos vem do exterior, com quase metade saindo dos fiordes do Chile.

A indústria de salmão do país sul-americano tem sido criticada pelo uso em grande escala de antimicrobianos. É frequentemente acusada de poluir cursos d'água e contribuir para florações incomensuráveis de algas. À medida que as áreas primárias onde se estabeleceu a aquicultura foram se deteriorando, graças à crescente demanda internacional, a criação de salmão chileno se expandiu para a natureza intocada da região mais ao sul do país, especialmente para Magalhães, na Patagônia.

Em abril, um relatório feito para a ONU classificou a criação de salmão como "uma das principais ameaças ao meio ambiente" na Patagônia. David R. Boyd, professor associado da Universidade da Colúmbia Britânica, preparou o relatório da ONU no qual recomendou fortemente a suspensão "da expansão da aquicultura de salmão, que está pendente de análise científica independente sobre os impactos ambientais adversos". Mas esse apelo foi rejeitado pela indústria.

Arturo Clément, presidente da associação industrial SalmonChile, reconheceu que, no passado, o setor cometeu erros, mas ainda tem muito espaço para melhorias: "Nos últimos 40 anos, a criação de salmão se tornou uma indústria vital para o sul do Chile. Estamos convencidos de que é possível tornar o cuidado ambiental compatível com o desenvolvimento econômico."

Antezana não compartilha desse otimismo. Avalia que é difícil mensurar a extensão dos danos aos ecossistemas costeiros do Chile, porque estudos de base para monitorar os efeitos da criação de salmão na aquicultura nunca foram feitos. "Aqui ainda estamos no Velho Oeste", comentou.

A maioria das fazendas de salmão chilenas aplica nos peixes, rotineiramente, antibióticos e pesticidas para prevenir infecções por surtos de doenças como a piscirickettsiose e a anemia infecciosa do salmão. De acordo com a Sernapesca, agência nacional de pesca do Chile, mais de 338 toneladas métricas de antibióticos foram aparentemente usadas em fazendas de salmão chilenas em 2023.

Esse número foi significativamente menor em relação ao uso de antibióticos em vários anos anteriores, mas ficou muito acima da meta estabelecida pela indústria chilena para reduzir o uso. Para fornecer uma comparação, a Noruega, o maior produtor mundial de salmão de viveiro, declarou que não fez uso de nenhum antibiótico nesse mesmo ano.

O aumento da resistência aos antibióticos foi reconhecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma grave ameaça à saúde pública global. A aquicultura, incluindo a criação de salmão, é um dos contribuintes para aumentar o problema, disse Felipe Cabello, professor de microbiologia e imunologia no New York Medical College (Faculdade de Medicina de Nova York, na tradução do inglês).

Mas, em razão dos rigorosos protocolos de quarentena e testes, o salmão chileno não contém praticamente nenhum resíduo de antibiótico quando chega aos supermercados americanos: o Chile e os Estados Unidos testam a carne de salmão chilena para detectar a presença de resíduos de antibióticos. Cabello, no entanto, disse que nenhum dos dois testa as amostras para a presença de bactérias, o que representa um risco para a saúde pública.

Se alguma bactéria tiver genes resistentes a medicamentos, eles podem ser transferidos para o trato intestinal dos humanos e, assim, transmitir resistência a antibióticos em um processo conhecido como transferência horizontal de genes, no qual o material genético é transmitido de uma bactéria para outra.

Cabello explicou ainda que os pesquisadores estão cada vez mais temerosos do desenvolvimento de "superbactérias" resistentes a antibióticos, porque as fazendas de salmão podem promover os criadouros antimicrobianos ideais, já que de 70 por cento a 80 por cento dos antibióticos ingeridos pelo salmão têm chances de passar para o meio ambiente.

Resíduos de antibióticos foram descobertos em populações de peixes selvagens próximas de fazendas de salmão. Quando o clima ruim agita a superfície da água ou as estruturas que confinam os peixes estão mal fechadas, o salmão escapa das fazendas em grandes quantidades. São peixes predadores que colocam em risco as espécies locais, desestabilizam o ecossistema e levam contaminantes para além dos locais de cultivo, conforme observou Cabello.

Alguns cientistas também se preocupam com a alimentação do salmão de viveiro feita com substâncias proteicas, como a soja e subprodutos da pecuária. "A indústria no Chile está alimentando peixes com alimentos que são artificiais para eles", disse Ivonne Lozano, pesquisadora e especialista em segurança alimentar da Universidade do Chile.

Especialistas creem que os alimentos lixiviados (com elevada concentração de matéria orgânica e alta toxicidade) que caem no fundo do mar, bem como as fezes de peixes e outras substâncias, estão contribuindo para a proliferação regular de algas nocivas e para o surgimento de áreas de baixo oxigênio chamadas "zonas mortas", porque matam a vida oceânica.

Lozano citou a alimentação artificial como um dos três principais fatores contribuintes para doenças em fazendas de salmão chilenas, em conjunto com a alta densidade populacional dentro das gaiolas de rede e o fato de que o salmão não é nativo da região.

Desde 2014, o Seafood Watch, do Monterey Bay Aquarium, autoridade global em frutos do mar sustentáveis, aconselha os consumidores a evitar a maioria dos salmões cultivados no Chile, citando a dependência que têm da indústria farmacêutica.

Nos últimos cinco anos, essa organização sem fins lucrativos tem trabalhado com grupos industriais chilenos para reduzir pela metade o uso de antibióticos até o próximo ano. Por outro lado, grupos empresariais de salmão do Chile afirmam que, quando considerado em um período mais longo, o volume de antimicrobianos está diminuindo.

Embora o uso tenha caído em alguns anos, aumentou significativamente em 2021, cerca de 34 por cento. Dados mais recentes mostram que a quantidade de antibióticos usados em 2022 foi maior do que quando a parceria começou. "Parece impossível atingir a meta deles", declarou Liesbeth van der Meer, vice-presidente da Oceana Chile, grupo ambientalista sem fins lucrativos.

Outra iniciativa, o Projeto Yelcho, foi anunciada como o primeiro esforço público-privado para reduzir o uso de antibióticos, reunindo agências governamentais com as maiores empresas de salmão e grupos industriais do Chile, incluindo a SalmonChile.

A imagem mostra vários filés de peixe dispostos em camadas. Os filés têm uma coloração laranja clara e apresentam uma textura suave e brilhante. A disposição é organizada, com os filés sobrepostos parcialmente.
A expansão da indústria de salmão na região da Patagônia do Chile tem enfrentado desafios repetidos de ambientalistas e povos indígenas, e provocado pedidos de moratória. - Marcos Zegers/NYT

Com a pressão sobre a indústria para reduzir os antibióticos, o sul da Patagônia deve ser considerado como peça-chave nesse contexto. Clément argumentou que as águas mais frias da região limitariam os surtos de doenças, facilitando a redução do uso de antibióticos.

Em busca de locais de cultivo mais limpos, a indústria se estabeleceu em Magalhães, cuja capital é Punta Arenas e é composta por duas zonas, a continental e a antártica. De acordo com alguns pesquisadores e ativistas, isso pode ter consequências catastróficas para os ecossistemas locais e para a saúde humana. Muitos questionam se o crescimento econômico justifica a aquicultura industrial.

A casa de palafitas de Antezana tem vista para águas usadas há muito tempo para a aquicultura. Ele assiste, em primeira mão, às pilhas de lixo e aos resíduos de peixes abandonados por empresas de salmão em Los Lagos, quando estas vão embora. O lixo fica acumulado nas margens durante meses e, em alguns casos, apenas os protestos dos moradores locais forçam as empresas a fazer a limpeza. "Todas essas coisas ruins vão seguir para as fazendas do sul", disse Antezana.

Em Magalhães, a criação de salmão se expandiu. A província tem o maior número de licenças pendentes, de acordo com os reguladores da indústria de salmão do Chile. Existem cerca de 130 concessões para instalação de indústrias de salmão, ou licenças para fazendas. Isso é menos do que em outras grandes regiões de aquicultura no país. Mas, geralmente, apenas 50 delas entregam peixes por mês, de acordo com um porta-voz da Sernapesca.

Magalhães abriga um terço da biodiversidade marinha do mundo e uma série de espécies protegidas, incluindo a baleia-azul, o pinguim-de-magalhães e o golfinho chileno.

Especialistas do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Aquicultura da Universidade de Concepción ressaltam que a introdução do salmão pode afetar organismos invertebrados exclusivos da região, como corais de água fria e esponjas. E, como os peixes cultivados vivem de uma dieta baseada em soja, as composições químicas do mar provavelmente mudarão —assim como as águas de Los Lagos mudaram no norte da Patagônia.

A produção em Magalhães aumentará no início, afirmou Cabello. "Mas, se eles continuarem fazendo as mesmas coisas, não tenho dúvidas de que, depois de alguns anos, a produtividade vai cair de novo e eles vão ter os mesmos problemas: infecção e uso excessivo de antimicrobianos."

Mas Clément discorda; diz que as condições em Magalhães são diferentes daquelas mais ao norte, de modo que o resultado não será o mesmo.

Antezana expressou preocupação de que as bactérias tenham um metabolismo mais baixo, retardando a decomposição de subprodutos agrícolas. "A indústria foi para o sul porque as águas não estavam poluídas e porque poderia garantir ao público que recebe as águas claras das geleiras, o que parece ótimo", disse. E acrescentou: "Além disso, como a água mais fria é mais densa, é provável que fique retida nas microbacias profundas encontradas em Magalhães, levando, possivelmente, a um acúmulo de matéria orgânica."

Grupos industriais estão pressionando para aumentar a produção. "As licenças que temos na região de Magalhães são muito limitadas. É algo que precisamos discutir", Clément disse.

Não se sabe até que ponto a indústria do salmão será capaz de se expandir em direção ao sul da Patagônia. Antezana destacou que a mudança está ocorrendo sem bases científicas ou estudos rigorosos para estabelecer possíveis limites de produção.

Políticos chilenos vêm debatendo se devem congelar ou limitar as concessões de novas fazendas em águas mais ao sul.

Em março de 2022, Gabriel Boric foi empossado como o mais jovem presidente do Chile. Agora com 38 anos, tem tatuagens em homenagem à região onde foi criado: Magalhães.

Mesmo antes de ser eleito, o líder de tendência esquerdista era um crítico feroz da indústria do salmão, dando aos ambientalistas a esperança de que tinham um novo campeão para combater a expansão territorial das fazendas.

Quando chegou ao poder, o presidente prometeu reformar a Constituição chilena – em vigor desde a era do general Augusto Pinochet. Mas os eleitores rejeitaram um referendo, efetuado em 2022, que traria reformas ambientais de longo alcance. Um segundo referendo, promovido no ano passado, também fracassou.

Foi promulgada uma nova lei que exige que as empresas de criação de salmão divulguem publicamente a quantidade de antimicrobianos que usam, bem como as taxas de biomassa e mortalidade de sua produção.

Grupos como o Oceana e ativistas indígenas continuam pedindo a Boric que se esforce mais.
Leticia Caro, membro da comunidade indígena kawésqar, disse que já viu os efeitos devastadores da indústria do salmão no território ancestral de seu povo em Magalhães, mencionando a contaminação do fundo do mar, a perda de espécies de peixes nativos —das quais sua comunidade depende para alimentação— e o despejo de resíduos industriais nas áreas de pesca dos kawésqar. Estes navegam nessas águas frias há milhares de anos.

"No mar, há espíritos e energias que vivem e coexistem conosco. Queremos que deixem nosso território", declarou ela por meio de um intérprete.

Mas algumas pessoas pertencentes à comunidade kawésqar apoiam as vantagens econômicas advindas da aquicultura.

Caro quer que as áreas protegidas sejam respeitadas, que a instalação de novas fazendas não seja permitida e que se imponham sanções contra as empresas que causam danos.

Muitos povos indígenas na Patagônia chilena estão envolvidos em lutas legais e políticas para recuperar os direitos à terra e à água. Essas áreas contestadas são consideradas vitais pela indústria do salmão. Em junho, esforços separados de grupos indígenas em duas regiões —Aysen e Los Lagos— foram derrotados.
Clément entende o apelo que os peixes cultivados no remoto sul da Patagônia têm para o consumidor: "São muito nutritivos, saudáveis e sustentáveis, vêm de águas muito puras e de lugares puros."

Não está claro por quanto tempo o sul da Patagônia permanecerá tão puro. Pedindo aos americanos que parem de comprar salmão cultivado no Chile, Leticia Caro acredita que ainda há tempo "para salvar a única parte quase intocada do planeta".

Antezana também acredita que a pressão feita por outros países fará a diferença.

Mas o atual presidente já está na metade do mandato e pouco foi feito. Por isso, ambos não acreditam que o governo sozinho possa proteger o sul da Patagônia contra a disseminação da criação de salmão. "Infelizmente, não estou muito esperançoso, mas não significa que vou desistir da luta", afirmou Antezana.

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