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Pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo.

Uma criança desmaiada sobre a carteira escolar

Nas políticas públicas educacionais há muitas vezes descolamento entre o mundo real e as boas intenções dos gestores e políticos

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"Ela sentou e abaixou a cabeça na mesa. Eu estranhei e chamei ela à minha mesa. Ela veio e eu perguntei se ela estava bem. Ela fez com a cabeça que estava, mas com aquele olhinho de que não estava. Perguntei se ela tinha comido naquele dia, ela disse que não."

"Fui pegar algo para ela na minha mochila —porque eu sempre levo um biscoitinho ou uma fruta para mim mesma. Mas não deu tempo. Ela desmaiou em sala de aula."

O relato de uma professora da rede pública do município do Rio de Janeiro abre a matéria da jornalista da BBC Brasil Thais Carrança sobre a crise nas escolas brasileiras. Uma matéria necessária, tocante, que é mais um sintoma de como o Brasil regrediu nos últimos anos, voltando a ter problemas que pareciam erradicados.

Alunos frequentam aula presencial em meio à pandemia da Covid, em São Paulo - Zanone Fraissat - 18.out.2021/Folhapress

Thais acompanhou professores e professoras de outros estados brasileiros com relatos semelhantes: estudantes com fome, a orfandade precoce decorrente da morte dos responsáveis durante a pandemia, o abandono escolar para trabalhar, a solidão e a ansiedade dos professores diante de problemas para os quais não têm instrumentos à mão para solucionar.

Uma criança não fica de pé apenas com a merenda escolar. Um outro dado alarmante: segundo dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde obtidos via Lei de Acesso à Informação pelo Jornal Hoje, da TV Globo, 74% das crianças brasileiras de 2 a 9 anos não realizam três refeições diárias.

No campo das políticas públicas educacionais há muitas vezes um descolamento entre o mundo real da escola e as boas intenções dos gestores, especialistas e políticos. Ouvir educadores dá trabalho e "atrasa" o processo, pensam alguns.

Minha experiência comandando por duas vezes a maior rede municipal do país –maior do que a da maioria dos estados brasileiros– indica o contrário: todas as vezes que errei –e não foram poucas– foi por não compreender que quem realmente implementa uma política educacional são os educadores. O mesmo vale para outros "burocratas no nível da rua": policiais, profissionais de saúde, assistentes sociais e outros.

Talvez ao ouvir esses profissionais, gestores municipais e estaduais percebam que desenhar currículos, formar professores, estruturar programas de reforço escolar, conectar escolas e equipá-las são ações necessárias, mas não suficientes. Ninguém aprende com fome, com medo da violência doméstica, sem apoio para superar traumas recentes.

É preciso –e tenho insistido a ponto de levar você, leitor, ao enfado– desenhar com estes profissionais uma rede de proteção aos estudantes no território, tendo a escola como um elo. Com todo o arcabouço tecnológico que temos em mãos é possível integrar políticas públicas de segurança alimentar, saúde, educação e assistência social.

A criminalização e a negação da política, o ambiente tóxico amplificado pelas redes sociais que nos faz negar quem pensa diferente de nós, não ouvir argumentos contrários às nossas crenças, transformar adversários em inimigos, nos faz cegos a um país que em nome do combate à corrupção avança sobre as instituições e leis que nos permitem desvelá-la e punir corruptos. Também nos cega em relação à volta de males que pareciam perdidos no passado, como a inflação, a fome, o trabalho infantil, a desesperança, o abandono escolar e a ampliação da desigualdade.

Se os ataques à democracia, aos valores republicanos e aos direitos conquistados desde a Constituição de 1988 não nos comovem, quem sabe a imagem de uma criança que desmaia sobre uma carteira escolar nos dê coragem para mudar de rumo e sair da escuridão em que nos metemos.

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