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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Debaixo de sete chaves

Há momentos da paternidade que preciso reconhecer para não deixar passar batido

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Na TV, pela milionésima vez, Cinderela brinca com a mãe. No sofá, minha filha abre um sorriso, mas logo seu rosto se turva e ela salta pro meu colo. "Eu sei porque você quis colo", digo, tentando consolá-la. "Porque você lembrou que a mãe da Cinderela vai morrer e ficou triste." Ela me olha pasma, como se eu tivesse lido os seus pensamentos.

Explico que não preciso ser mágico para entender como uma menina de seis anos se sente a respeito de uma filha que perde a mãe. Ela diz que fica muito, muito, muito triste sempre que chega a parte em que a mãe da Cinderela morre. Comento que é triste, mesmo, mas que depois fica tudo bem, ela consegue fazer o vestido com a ajuda dos ratinhos, a fada madrinha os transforma em cavalos da carruagem de abóbora, ela vai ao baile, se apaixona pelo príncipe, se livra da madrasta e das irmãs malvadas e acaba tendo uma vida feliz. Enquanto ouve, minha filha fita o chão e vai desnublando: consigo ver o brilho do sapato de cristal dentro da sua cabeça. Ela sorri e se aconchega no meu colo.

Ilustração de Adams Carvalho para coluna de Antonio Prata - Adams Carvalho

Percebo que é um desses momentos raros da paternidade que preciso aprender a reconhecer para não deixar passar batido no meio de tantos "Já pedi três vezes pra lavar a mão!" e "veste logo essa meia que a gente tá atrasado!" e "não, porque não estamos na Páscoa, não tem ovo de Páscoa aqui, você já escovou os dentes e são duas da manhã!!".

Digo à minha filha que fiquei muito contente por poder consolá-la e que é muito bom assistir a filmes com ela. Ela não dá muita bola. Na verdade, ela e meu filho não entendem e acham meio chato quando eu fico muito babão.

Um dia, porém, ela vai valorizar aquele momento e proponho uma brincadeira: sempre lembrarmos daquele dia. Todas as semanas, pelo menos uma vez, a gente vai recordar do dia em que ela ficou triste vendo Cinderela e veio pro meu colo e eu a acalmei e ela ficou ali, aninhada até o final do filme.

Ela se anima, não porque veja qualquer profundidade na situação, mas porque a excita a antecipação do jogo recém-inventado. Uma memória que teremos que manter: é como fazer pão, plantar feijão no algodão, como as marcas de altura que riscamos com Bic, desde que aprenderam a ficar de pé, no batente da porta do banheiro.

Daria um bom livro, penso, um romance sobre a relação de um pai e uma filha ou um filho, contado a partir desta cena e narrando todas as vezes em que eles a recordaram: o que estava acontecendo na vida de cada um? Qual era a relação entre os dois? Como e por que a cena veio à tona no dia seguinte, na semana seguinte, no ano seguinte? Na formatura da filha? Num momento delicado na saúde do pai?

Talvez em algum momento a memória deles transforme Cinderela em Bela Adormecida. Ou o filme em livro. O pai diga que a filha estava aos prantos e depois do que ele falou, ela caiu na gargalhada. Talvez a filha diga que a ideia do jogo foi dela, ela é quem quis lembrar daquilo pra sempre. Talvez os dois duvidem da veracidade da cena.

Talvez nenhum dos dois se lembre exatamente de quando aquilo aconteceu, só das vezes que retomaram a história. Talvez um dos dois escreva este livro, em homenagem ao outro, no final da vida. Talvez a filha conte a história, já bem velhinha, ao tataraneto daquele pai, sentado em seu colo.

Talvez eu e a minha filha nos esqueçamos da brincadeira alguns meses depois do ocorrido: imagino que não, porque a partir de agora a memória estará esculpida em zeros e uns, per saecula saeculorum, em algum rincão da rede mundial de computadores.

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