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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Anjos tronchos do Vale do Silício

Você comprava uma furadeira online e durante meses recebia, em qualquer site, propagandas de furadeira

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O espelho não é um amigo leal –que o diga a madrasta da Branca de Neve. Os que de fato nos guardam debaixo de sete chaves, do lado esquerdo do peito, não hesitam entre a verdade e nosso bem-estar: fecham sempre com o segundo. “Amigo, amigo meu: existe homem mais bonito do que eu?”. “Não, ó, Antonio. Diante de ti, roem-se de inveja Pitts, Reymonds e Mastroiannis”. Ilusão? É claro, mas entre o deserto e a miragem, você escolhe as dunas ou o oásis? “Podem ficar com a realidade/ esse baixo astral/ em que tudo entra pelo cano// eu quero viver de verdade/ eu fico com o cinema americano”.

Durante décadas, “os anjos tronchos do Vale do Silício” produziram espelhos opacos com seus algoritmos mambembes, incapazes de devolver imagens nítidas de nós mesmos. Você comprava uma furadeira online e por meses recebia, em qualquer site, propagandas de furadeira, como se furadeiras fossem Fandangos a serem consumidos na base de um saco por dia. Era algoritmo em ritmo de saldão: “Enlarge your penis” de Tóquio ao Sudão.

Faz uns meses, porém, notei que o Spotify vinha refletindo de forma bastante precisa meus gostos musicais. Notei também não estar gostando do que compreendia sobre mim ao contemplar meus gostos musicais. Desculpa, Caetano, mas às vezes Narciso acha feio precisamente o que é espelho.

Foi por acaso que encontrei a pasta “Descobertas da semana” entre minhas listas –“Corrida 1”, “Churrasco”, “Jantarzim calmim”, “Quebradeira black”, “Cannabi-noiz-na-fita”. As músicas enviadas semanalmente, por DJs cibernéticos, de algum porão californiano exclusivamente para os meus ouvidos eram de fato a minha cara. Parecia que eu já gostava delas antes de conhecê-las. Lá pela terceira ou quarta semana, contudo, meus próprios algoritmos neuronais foram decifrando alguns padrões por trás daquelas faixas –e foi aí que começou o incômodo. Primeiro, desagradou-me minha predileção por versões. Marisa Monte em italiano. “Strawberry Fields Forever” num ska em castelhano. Jazz orquestrado tocando frevo.

Gostar de versões me soou a covardia estética. É como se o Spotify me dissesse que eu curto um verniz de mudança, mas sem me afastar do conhecido. A lista mostrava também uma clara admiração pelo que podemos chamar, com vinte quilos de aspas, de “étnico”. É um traço bem vila-madalenoso, meio intelectual, meio de esquerda: sobre uma levada tradicional, 2/4 ou 4/4, entra uma mulher de voz potente com aqueles cantos africanos: “alalauê obaiôooo lalaiê loruá ôoooooooô lalairô!” –e sob uma chuva de serotonina, quase me vejo de mãos dadas com Mandela.

Compreendo que não tenho curiosidade pelo novo, mas uma ânsia pelo mesmo, remixado. O espelho do Spotify reflete meu lado etnografia de boutique, lojinha de museu, minha herança de branco culpado. Sem tirar minhas bermudas cáqui de colonizador europeu (a levada 2/4, 4/4), os “alalauê obaiôooo” da africana penduram na parede da minha casa uma máscara ritual congolesa. (Eu tenho bermudas cáqui. Eu tenho na parede uma máscara ritual congolesa).

Eis o saldo estético impresso no extrato do meu Spotify: um tiozinho medroso e conservador, desses que viaja sem se afastar do city-tour. Esquerda caviar, tentando anular a herança colonial botando bromélias num pote de cerâmica manauara. Admito, algoritmo, este sou eu: apegado a Rita Lee e a sua mais concreta tradução, só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João é que alguma coisa acontece no meu coração. Quando toca Billie Eilish ou Lil Nas X, não.

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