Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"
É, mas também não
Em várias madrugadas, entediado, entro no youtube e fico assistindo a palestras do Suassuna
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Que visão astronômica tinha o Ariano Suassuna. “Auto da Compadecida” é o maior texto de comédia já escrito no Brasil — caso concordemos que “Memórias póstumas” compete noutra categoria. A ambição do Suassuna com o Movimento Armorial deveria dar a ele, no céu bem brasileiro de sua Compadecida, um lugar igual ao de Dante no Éden dos italianos e Miguel de Cervantes no dos espanhóis. Que vislumbre grandioso ele teve do que poderia ser este país e a que profundidade levou nossas manifestações populares.
Ou: que visão estreita tinha Ariano Suassuna. Inimigo mortal da cultura norte-americana, enxergava-a com uma miopia incompreensível para quem examinava o Brasil de drone e microscópio eletrônico. Incapaz de reconhecer na televisão uma forma de arte popular com sabores tão semelhantes aos dos cordéis e mamelungos, Suassuna não pode compreender que João Grilo e Chicó eram primos de Jerry Seinfeld e George Costanza, Ross, Rachel, Chandler, Monica, Joey e Phoebe. Todos tataranetos da comédia dell’arte e bisnetos do vaudeville. Em várias madrugadas, entediado, entro no youtube e fico assistindo a palestras do Suassuna. Maravilhado, discordo de quase tudo o que aquele gênio iluminado diz.
Ou: que bom que hoje se tornou comum a prática de esportes, que as campanhas antitabagismo reduziram enormemente o número de fumantes, que com hábitos saudáveis mais pessoas podem ter vidas mais longas e prazerosas. Não há nenhum hedonismo em ser um escravo asmático da Philip Morris, um servo obeso da Embev ou da Elma Chips.
O vinho é infinitamente superior à cerveja. Cada garrafa é um livro de história, geologia, meteorologia, botânica, física, química, sociologia, antropologia, filosofia e outras cátedras das exatas, humanas, biológicas — e metafísicas. Cada vinho pede sua própria taça, comida, temperatura, estado de espírito. Num mundo tão árido, o vinho nos relembra da importância dos ritos. Já uma Budweiser é uma Budweiser em Tamanduateí ou Xangai. Seu sabor adocicado e leve é adequado ao paladar infantil das massas. O vinho é uma bebida inteligente. A cerveja é burra.
Ou: a hegemonia da cerveja como bebida alcoólica mais consumida no mundo é um dos maiores legados da Revolução Francesa — assim como Seinfeld, Friends e Auto da Compadecida. Cerveja é o triunfo dourado do homem comum sobre a aristocracia. A vingança proletária que se bebe fria. A cerveja não é excludente como o vinho, com seus preços, termos, taças, rituais. É compreensível a todos, é um suave Esperanto nessa espinhosa Babel. A cerveja é tão bela quanto os Beatles. As pilsens são “Love me do”. As IPAs são Blackbird. (As souer já são alguma composição do John Lennon com a Yoko Ono).
Nada disso é contraditório. Ou melhor: não existe contradição no contraditório. Que tempos toscos em que temos que escolher entre A ou B. Ou: que bom, finalmente, que tenhamos que escolher entre A ou B e arcar com as consequências.
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