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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

O grande mistério

Identifiquei talvez o único traço que una gregos e troianos, israelenses e palestinos

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Já fui à China, ao Japão, a Birigui e ao Jalapão. Fiquei em pensão de beira de estrada em Seropédica e em resort seis estrelas no Caribe. Rodei o mundo. Olhei. Comi. Bebi. Escutei. Cheirei. Tateei. Li. Assisti. Contemplei e refleti. É com profundo conhecimento de causa, portanto, que venho aqui, do alto dos meus 45 anos, dividir o que aprendi em minhas andanças. Uma verdade universal que não varia de acordo com o hemisfério ou a cultura, a riqueza ou a pobreza, a religião ou a cor da pele. Talvez o único traço que una gregos e troianos, israelenses e palestinos, russos e ucranianos: não há, jamais, em nenhum hotel, pasta de dentes.

Outro dia fui ao Rio, a trabalho. Me puseram num hotel ótimo. (Ronaldo Fenômeno tava todo dia na piscina). No meu quarto tinha xampu, sabonete, hidratante, cotonete, algodões. Tinha um kit com agulhas, linhas e até botões de seis cores diferentes. Tinha uma caixa com quatro brigadeiros na mesa. Mas não havia —nunca há— uma mísera pasta de dentes.

Não é questão de economia, ou não dariam todos os itens supracitados. É uma questão de escolha. De princípios? Que princípios são esses? Qual imperativo moral sustenta esta inquebrantável aversão ao dentifrício? Me expliquem os professores de administração da FGV, os filósofos, sociólogos e antropólogos da USP, toda a turma do Senac, Sesi e Senai, Bill Gates, Yuval Harari, Davi Kopenawa: por que diabos os hotéis pensam que linha de costura cor de abóbora é mais imprescindível do que creme dental?

Escovar os dentes é mais importante até do que tomar banho. Claro, eu indico (e sigo a orientação) que se faça os dois com bastante regularidade, mas é possível acordar, lavar o rosto, escovar os dentes e sair pro mundo. Intolerável, contudo, é acordar, tomar banho, NÃO escovar os dentes e sair por aí.

Pasta de dentes é um troço fácil de se esquecer. Talvez porque sua parceira, a escova, seja tão importante (é o Batman da dupla), que acabe obnubilando a companheira (pobre Robin, deixado para trás). Aí você chega no hotel de madrugada. Se dá conta de que esqueceu a pasta. Liga na portaria. Teriam pasta de dentes pra vender? Não, eles não têm. É um dogma. Haverá algo maior por trás? Tipo maçonaria? Satanismo? Avon? Que ojeriza ao flúor é essa capaz de vencer até o amor ao vil metal?

Os hotéis ganhariam muito entrando no mercado das pastas. Como fazem com tudo, jogariam o preço nas alturas. "Sim, senhor Antonio, temos aqui uma Colgate Anti-tártaro por R$ 39,99 e uma Oral B branqueadora por R$ 54,00." "Beleza. Manda aí a Colgate, então. Mais um misto e duas Cocas-zero." Mas não. Se recusam.

Nesse hotel em que eu fiquei, no Rio, tinha uma loja de conveniência aberta 24 horas. Você podia descer lá às 04:32 AM e comprar uma salada de frutas, uma garrafa de gin amazônico, um chapéu Panamá, um canivete suíço e um kit para engraxar sapatos. Pasta de dentes? Necas. Se a loja não fosse 24 horas, eu iria lá de madrugada, quando ninguém estivesse olhando e picharia "IN" antes de "conveniência". Afinal, chapéu Panamá em vez de um tubinho qualquer de Closeup, convenhamos, não convém.

É preciso estudar a fundo esse fenômeno. Talvez haja aí uma falha na Matrix. Um buraco negro no consenso neoliberal. Um ponto cego do capitalismo. A brecha através da qual conseguiremos romper com esse sistema que nos leva, cheios de hidratantes e algodões e kits de costura, para o apocalipse. Ou, se for pra acabar, mesmo, que os viajantes ao menos tenham a dignidade de encarar o fim com dentes brancos e hálito puro.

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