Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

O Brasil que deu certo ou que poderia ter dado

Quando o repique é consolado por tambores em uníssono, o chão treme, dançam as passistas e rodam as baianas

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Arrastão de Cascadura, Unidos do Cabuçu, Acadêmicos do Peixe e Sereno de Campo Grande são algumas das escolas no grupo D do Carnaval carioca. Desfilam todo ano na estrada Intendente Magalhães, a "passarela do povão", a 22 km da Sapucaí.

O barracão do Arrastão é modesto se comparado ao da Portela, mas a bateria não deve nada a ninguém. Quando o repique entra aflito esperneando e é consolado por mais de cinquenta tambores em uníssono, o chão treme, treme a pele do rosto, a capa do São Jorge/Ogum na parede e a latinha de Brahma ali em oferenda. Então dançam as passistas, rodam as baianas e não tem mais série D, grupo especial ou de acesso, é só o Brasil que deu certo ou que poderia ter dado ou talvez possa dar.

Ilustração de pessoas tocando instrumentos musicais em uma bateria
Adams Carvalho

Passei uma semana na zona norte do Rio fazendo pesquisa para uma série de TV. (Agradeço às autoras cariocas Thais Pontes e Renata Andrade por terem dado a mim e ao Chico Mattoso o privilégio da parceria, salvando-nos assim, ao menos temporariamente, da soberba aridez paulistana).

Pertenço à bolha inculta para a qual "suburbano" é termo depreciativo. Como lembrou o mestre Luiz Antonio Simas, enquanto nos guiava pelas ruas e encruzilhadas de Madureira, se tirarmos do Rio a contribuição cultural do subúrbio não sobra quase nada. Nem o beach tennis se salva, pois a moda das atuais garotas (e garotos) de Ipanema é filha do frescobol, invenção de um ilustre cidadão do Méier, Millôr Fernandes.

A zona norte do Rio quase não tem árvores, quase não tem praças, é uma imensidão de concreto, azulejo, porcelanato e fios emaranhados para os quais o Cristo dá as costas. Mas foi (e é) ali que o gás carbônico da escravidão e dos migrantes pobres expulsos do centro pelas reformas "embelezadoras" do sempiterno "cidadão de bem" foi transformado no oxigênio que ainda mantém viva a cultura nacional. É triste e lindo: aqueles que foram sequestrados, violentados e expulsos para as bordas trouxeram de volta, chacoalhando no trem, boa parte do que há de bonito nesta experiência torpe chamada Brasil.

Há, claro, em várias partes da zona norte, a presença do tráfico, das milícias, do bicho, das igrejas neopentecostais, mas como não haveria? Se o Estado não traz a ordem, alguém há de trazer, seja pela bala, seja pela Bíblia. Não estou de forma alguma legitimando o crime, mas criminalizando o Estado, há cinco séculos servindo a um punhado de cupins. (Peço perdão aos cupins, pois basta comparar a solidez de um cupinzeiro à de nossas instituições para perceber a inconteste superioridade dos insetos).

A zona sul do Rio é hoje como a casca oca do Hotel Glória (olha o nome), que Eike Batista ia reformar quando faliu. Uma mansão caindo aos pedaços, habitada por fantasmas. A zona oeste paulistana é mais rica em dinheiro, mas igualmente pobre de espírito. Essa turma que rifou o Brasil nas mãos do senhor de engenho Paulo Guedes é a mesma que levantava a bandeira do liberalismo contra a abolição da escravatura —o Estado não deveria se meter nos negócios privados.

Duas semanas atrás eu não tinha qualquer esperança, agora tenho. (Não muita, mas alguma). Pra além dessa elite tacanha que vai da monocultura da cana à escola bilíngue do Enzo sem jamais cruzar com Pixinguinha, sobrevive latente um outro país, onde os deuses dançam através dos homens e os jovens afrofuturistas trançam em seus cabelos os fios soltos da história nacional. "O Brasil não merece o Brasil" -—ainda.

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