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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

De pernas pro ar

Usar bermuda é uma atitude 'decolonial'

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Eu não canso de me surpreender com o fato de as pessoas se surpreenderem com o fato de eu usar bermuda. No Brasil. Numa cidade onde a temperatura bate os 36 graus —no inverno. Acham que é uma atitude infantil ou traço de uma adolescência tardia. Maturidade, aos olhos (ou às pernas?) dos meus críticos, é passar a vida suando o rego.

De uns tempos pra cá, venho dando às questões térmicas um viés político. Afirmo que usar bermuda é uma atitude "decolonial". Onde vocês veem os meus joelhos, vejo Simón Bolívar e San Martín. Minhas canelas são Zapata e Tupac Amaru. As panturrilhas atendem por Gandhi e Frantz Fanon. Ao vestir a bermuda, dispo-me da opressão europeia.

Sabiam que, em São Paulo, um taxista que não estiver de calça social leva multa? Segundo a "PORTARIA 7/2016 - SMT/DTP, DE 20 DE JANEIRO DE 2016", o traje requerido para o motorista é calça social, camisa social ou terno. Para "os taxistas da categoria de táxi Luxo", a regra é "terno ou smoking". Sim. Smoking, Jesus amado...

Os brasileiros da cidade acham que caipira é o Jeca Tatu —enquanto pagam o maior pau para o caipira dos Estados Unidos, mais conhecido como caubói. Os americanos, muito orgulhosos de sua nação, escalaram John Wayne para representar seu homem do campo. Nós, envergonhados de tudo o que é nativo, escolhemos o Mazzaropi. Aqui em São Paulo rimos do Mazzaropi e então nos sentindo muito cosmopolitas na sala de um edifício chamado Palm Beach ou Piazza Navona ou Versailles, fazemos um "call" para "endereçar" alguns assuntos, de modo que "no fim do dia", "eventualmente", todos estejam "na mesma página". Jeca total.

Lutar pelo Brasil não é, meu caro patrício, cantar "Teus risonhos, lindos campos têm mais flores" ou sair por aí vestindo a bandeira feito a capa do Super-Homem. Esses são os símbolos dos caipiras metropolitanos que mandam os taxistas vestirem calça social e que, se pudessem, fugiam pra Miami —sintomas do complexo de vira-latas. Para nos curarmos desta doença, temos que parar de querer ser huskies siberianos e valorizar a mistura.

Nada representa melhor a mistura brasileira do que o samba. Poucos bares de São Paulo representam melhor o samba do que o Ó do Borogodó. Nos últimos 20 anos, passaram por lá Beth Carvalho, Paulo Moura, Wilson Moreira, Yamandu Costa e Élton Medeiros; Fabiana Cozza e Kiko Dinucci são crias da casa; visitando o Brasil, a americana Esperanza Spalding e a portuguesa Maria de Medeiros (nada a ver com o Élton, até onde eu sei) deram canjas por lá. Mas não são os nomões que fazem do Ó um lugar importante para a cidade, são os mais de 70 músicos de primeira que tocam ali toda semana e seu público, responsáveis por manter viva a rica cultura sambista paulistana.

Pois bem: o dono do imóvel decidiu vendê-lo. Provavelmente, vão colocar o sobrado abaixo e construir mais um prédio chamado Palm Beach ou Piazza Navona ou Versailles. Stefânia Gola, dona do bar, está tentando fazer com que a prefeitura reconheça o Ó do Borogodó como uma Zepec-APC (Zona especial de preservação cultural —área de proteção cultural). Trata-se de uma espécie de tombamento que leva em conta não necessariamente o valor histórico ou arquitetônico de um lugar, mas sua importância na cultura e na vida da cidade. Se um dos principais celeiros do samba nos últimos 20 anos não for apto para tanto, o que será? As estátuas da liberdade do véio da Havan?

Neste domingo, das 11h às 17h, vai rolar na rua Horácio Lane, em frente ao bar, o festival #FicaÓ. Uma roda com dezenas de sambistas, a tarde toda, para tentar mostrar à prefeitura que é assim que se faz uma cidade viva, acolhedora e decente —não cobrindo as pernas dos taxistas.

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