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Yamandu Costa põe o pé na estrada com o mestre de violão em filme do In-Edit

Longa narra encontro entre o virtuoso de renome internacional e o argentino Lucio Yanel

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Porto Alegre

Por volta dos 31 minutos de filme, já depois de cruzarem a fronteira fluvial entre Brasil e Argentina, Yamandu Costa e Lucio Yanel aparecem tocando violão em uma praça de um povoado, onde estão montando o palco de um festival, quando ganham uma plateia local de curiosos.

“Vem aqui. Olha como eles tocam”, diz um homem a outro. “Isso é chamamé? Parece”, questiona o amigo, se referindo ao estilo musical típico da região. O primeiro resmunga algo, antes de seguir. “Sim, é chamamé. Eles são brasileiros. Tocam muito bem”, diz com cara de impressionado.

Nenhum dos dois argentinos parecia saber estar diante de um dos maiores nomes do violão atual, virtuoso reconhecido internacionalmente, e de seu mestre, argentino radicado no Rio Grande do Sul há quase 40 anos, músico e compositor, com a maior produção no chamado violão gaúcho.

Em "Dois Tempos", documentário dirigido por Pablo Francischelli exibido na competição nacional do festival In-Edit a partir desta quinta, Yamandu e Yanel embarcam em uma viagem de motorhome saindo da casa da mãe do músico gaúcho em Estrela, a 111 quilômetros de Porto Alegre, até o festival nacional de chamamé em Corrientes, terra natal do argentino. Isso no verão de 2019, ainda longe da pandemia do novo coronavírus.

O percurso, mapeado por Francischelli e por Caio Jobim, que assina com ele o roteiro, foi baseado em entrevistas e nas memórias afetivas de Yanel. Em paradas em locais da juventude dele, como o povoado correntino de Mantilla, onde seu pai trabalhou como ferroviário, ou no cemitério e santuário do santo pagão Gauchito Gil, com quem Yanel tem um parentesco distante, os dois músicos falam do passado e da vida em si, com entradas improvisadas de personagens que encontram no caminho.

“A gente tomou a decisão de filmar só com uma câmera, assumir que poderíamos não ter tudo, mas sabendo o que queríamos ter. Trabalhamos muito o fora de campo, o que não se vê, mas que está presente e tentando encontrar o lugar certo de se posicionar, para que essas pessoas pudessem entrar no filme e dar voz a esse território”, explica Francischelli.

A ideia do filme veio do diretor, que já havia trabalhado em projetos anteriores com Yamandu —como a série “Sete Vidas em 7 Cordas”, que mostra a história do violão de sete cordas através de músicos em atividade nos dias atuais— e nutria certa curiosidade pela figura de Yanel.

O motorhome foi sugestão do próprio Yamandu, ao lembrar o carro em que o pai, Algacir, fazia turnês com o grupo Os Fronteiriços pelo interior dos estados do Sul nos anos 1980 e 1990.

Yanel desembarcou no Rio Grande do Sul por causa do pai de Yamandu, aliás. Depois da Guerra das Malvinas, em 1982, com a Argentina em crise, derrotada e sem perspectivas de trabalho, especialmente para quem era da cultura, ele resolveu voltar a São Paulo, onde havia vivido anos antes e montado uma casa de espetáculos.

Como a viagem seria de ônibus, já que o dinheiro não era suficiente para uma passagem de avião, um amigo prometeu pagar uma parte se ele fizesse uma parada no município gaúcho de Passo Fundo e entregasse uma encomenda a um músico local.

A parada para deixar quatro caixas pesadas acabou se tornando o encontro com Algacir Costa, que tinha então dois filhos, um deles com pouco mais de um ano, Yamandu. Com os festivais nativistas em ebulição pelo Sul, Yanel diz que foi dormir com dez contratos para apresentações já alinhavados.

“Não saí nunca mais daqui, não fui a São Paulo. Fui bem recebido, muito querido, tenho procurado todo esse tempo devolver da mesma maneira, deixando um legado da minha arte”, diz ele, que hoje vive em Caxias do Sul.

Yanel rejeita a ideia de que é o fundador do chamado violão gaúcho, mas reconhece, com um pouco de modéstia, o posto de maior referência da modalidade. Antes de sua chegada, o violão na música regionalista fazia acompanhamento ao canto ou ao acordeão. O estilo trazido por Yanel, que chegou a tocar com Atahualpa Yupanqui e Mercedes Sosa, mudou tudo, porém.

“Eu não sou um dos criadores dessa forma de tocar violão, eu sou essa música. Isso eu vim compreender depois, porque para mim eu tocava violão de maneira normal, como toquei a vida toda, mas aqui nunca tinham visto tocar com esses sotaques, com essas arrancadas. Isso faz parte de uma forma que vem da Argentina e que se confunde com o rio da Prata, entra no Uruguai”, afirma ele. “Quando eu apareço, trago um sotaque provinciano, com identidade pampeana. O [bioma] pampa é 60% do território gaúcho.”

Segundo Yamandu, um show de Yanel que ele assistiu aos sete anos foi o que virou uma chave para ele. “Da minha geração, nomes como Maurício Marques, Marcelo Caminha, o falecido Arthur Bonilla, todos nós somos completamente influenciados pelo Lúcio. É um cara que colocou uma alma no instrumento, que realmente nos transportou, mudou tudo”, diz.

“Eu saí do Rio Grande do Sul cedo e comecei a levar o violão dele com o meu. Os músicos são feitos de parâmetros e inspirações, então, você acaba levando aquilo junto. O Lúcio está dentro do meu violão de uma maneira muito importante. Por onde eu vou abrindo porta, ele está junto comigo.”

Francischelli, o diretor, diz que uma das ideias do filme é também abrir uma janela para um Brasil pouco conhecido e explorado no cinema brasileiro, e para uma região da Argentina que foge aos estereótipos que se tem sobre a cultura do país vizinho, onde ele também nasceu.

"Dois Tempos" —nome do documentário, mas também de um disco que os dois gravaram juntos há cerca de 20 anos e de uma música de Yanel dedicada ao pupilo— costura as mais de três décadas de relação entre os dois.

Enquanto Yamandu virou um nome internacional, Yanel diz que nunca fez dinheiro com a música. Coisas do destino, talvez, o questionamento que permeia a conversa dos dois por todo o filme. Na pandemia, o argentino, de traços típicos e senso de humor que é uma de suas marcas, passou a explorar as lives em suas redes sociais. A próxima está marcada para o dia 1º de julho.

“Eu nunca tive referências. Eu saí tocando e saí tocando assim. Uma vez um violonista espanhol me disse que há violonistas que têm que estudar muito, outros têm que ser estudados. E eu tinha que ser estudado. Não sabia se era um elogio, de todas as maneiras, segui tocando”, diz ele, em tom de brincadeira.

Dois Tempos

  • Quando Estreia nesta quinta (17), às 12h, e tem previsão de exibição no canal Curta! ainda em 2021
  • Onde br.in-edit.tv
  • Preço Grátis
  • Elenco Yamandu Costa e Lucio Yanel
  • Direção Pablo Francischelli
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