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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Chupa, natureza: o desdém reservado ao sol e ao céu azul

Se meu chute estiver certo, a noção de beleza só surge quando a vida começa a escorrer pelas mãos

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Eis que, ontem, o Exu residente no shuffle do meu Spotify –a quem os ignorantes, os incréus ou apóstatas chamam, levianamente, de algoritmo– me presenteou com a linda música "Anos Doze", do tijucolusitano Luca Argel. "Ah como eu sinto saudade quando eu me recordo/ Daquele nosso tempo/ Em que passávamos as tardes assoprando cartucho/ De Super Nintendo/ Sendo piloto da Nasa ou agente da CIA/ Eu perdia horas/ Ficava dentro de casa enquanto fazia/ Um belo dia lá fora."

Eu podia falar de vários aspectos da letra, uma paródia hilária –"pero sin perder la ternura, jamás"– de "Doze anos", do Chico Buarque, cantada por Moreira da Silva. O que mais me pegou da primeira estrofe, porém, foi a história de perder horas dentro de casa "enquanto fazia/ Um belo dia lá fora".

Lembro da minha infância. Férias na praia. Minha mãe ou outro adulto tentando nos arrancar de um He-man ou Caverna do Dragão com este argumento que soava incompreensível, "tá um sol incrível! Aproveita!". O mundo gira, a Lusitana roda, estamos em janeiro, férias escolares e já me peguei algumas vezes tentando convencer meus filhos a trocarem a luz azul facínora do iPad pelo azul anil do firmamento. Eles me encaram com a mesma expressão de assombro com que eu encarava os adultos da minha infância. Hã?! E daí que tá sol? E daí que não tem uma nuvem no céu? O que há de especial nisso?! "Um dia lindo" faz tanto sentido pra criança quanto "um pernil de javali" pra um vegano. Usando as gírias deles, parece um argumento "aleatório" e nada "satisfatório". "Oxi!".

Enquanto, no som do carro, Luca Argel seguia cantando "Eu já troquei tardes de praia por reprises do Jiraya/ Ou caçando Pokémon /(Ao menos nisso eu era bom)/ Tantos domingos de pagode/ E eu no sofá tomando Toddy", fiquei pensando na razão de as crianças não perceberem a beleza de um dia lindo.

Num chute sem nenhum embasamento (uma das vantagens de ser cronista e não sociólogo ou jornalista), acho que tem a ver com a inexistência da morte. Claro que tanto meu filho de oito quanto a minha filha de dez sabem, desde os três ou quatro, que um dia a vida acaba, mas o conhecimento racional dessa verdade ainda não está inscrito na carne. Nós, adultos, quando o sol brilha lá fora e estamos presos no trabalho, sabemos: menos um dia ensolarado. Meus filhos simplesmente olham pela janela e pensam: vou construir uma pirâmide de ouro submersa no Minecraft. Vou pintar de rosa o hospital do Toca Boca. Vou assistir a mais três episódios do reality em que confeiteiros têm que fazer um bolo em forma de barco capaz de atravessar o rio Sena sem derreter a pasta americana.

O mesmo desdém reservado ao sol e ao céu azul é dedicado às paisagens. Fiz algumas trilhas em família. Caminhávamos uma, duas horas, chegávamos no topo de uma montanha, eu e a Julia olhávamos extasiados aquele mar de morros com cinquenta tons de cinza, de verde, de azul, nossos filhos nos encaravam, estupefatos: "é só um monte de montanha! De mato! Que que tem?!". Balbuciei algumas respostas medíocres, "é a natureza", "daí que a gente veio", "é a vida se mostrando pra gente!".

Se meu chute estiver certo, a noção de beleza só surge quando a vida começa a escorrer pelas mãos. Crianças estão a vinte mil léguas dessa sensação. Pensando bem, não deixa de ser uma postura admirável: um baita sol iluminando as montanhas da Mantiqueira, cachoeiras jorrando, tucanos voando e você podendo se dar ao luxo de jogar Mario Kart por seis horas seguidas, esnobando a finitude, o tempo, a morte. Chuuupa, natureza!

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