Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonio Prata

As bisnagas e o trovão

São raros os momentos em que a gente se dá conta: isso aqui é a vida

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Anteontem saí do prédio a caminho da padaria e cada filho meu agarrou uma mão. Foi um gesto automático, cotidiano, mas que me trouxe uma daquelas picadas epifânicas: já estamos nos acréscimos. A Oli tem dez, o Dani tem oito, num piscar de olhos nenhum deles vai querer pegar na minha mão, vão ter repulsa a qualquer toque e até vergonha da minha presença. Já posso ouvi-los, adolescentes, batendo a porta do quarto na minha cara, logo depois de dizerem "ai, pai, como você é burro!".

Aquelas bisnaguinhas mornas e macias buscando segurança em minhas mãos, ainda acreditando na mentira de que eu posso protegê-los dos perigos do mundo eram ao mesmo tempo uma bitoca da vida e um piparote da morte. O universo me premiando com a Mega-Sena e gritando no meu ouvido "perdeu, mané!".

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 24 de Dezembro de 2023, mostra o desenho de pai e filho de mãos dadas.
Adams Carvalho - Adams Carvalho

Outro dia eu tava saindo da ponte aérea e da fileira ao lado levantou uma mãe descabelada, olheiras de guaxinim: um filho de uns oito meses semiacordado e todo troncho no braço esquerdo, uma mochila da Peppa Pig no braço direito, a pasta de trabalho pendurada no pescoço, virada pras costas, enforcando-a, a mamadeira e uma chupeta entre os dedos que apertavam o bumbum do menino; o retrato clássico de malabarismo indigente da jovem mãe. Notei que um tênis da criança tinha ficado na poltrona. Entreguei a ela, que o meteu, com dificuldade, num bolso traseiro da calça jeans, me agradeceu com a expressão impávida de um Buster Keaton e seguiu trôpega em direção à porta do avião.

Lembrei das tantas vezes que ouvi, quando tinha bebês, "aproveita que passa rápido!". Soava como um conselho bizarro em meio às noites mal dormidas, ao cocô vazado da fralda, às voltas de carro pelo City Boaçava, porque era um bairro com pouco farol e se parasse no cruzamento o bebê acordava aos urros. Daí me peguei ali, no finger, morrendo de vontade de cutucar o ombro da mulher e falar "aproveita que passa rápido!". Ela me olharia com o mesmo assombro que devolvi a tantas pessoas bem-intencionadas, dez anos atrás. A experiência é incomunicável.

São raros os momentos em que a gente se dá conta: isso aqui é a vida, isso aqui é o importante, não tem nada além, tem só, agarradas às minhas, essas duas mãozinhas e o sentimento do mundo. Foi um segundo a iluminação do raio e já veio o susto do trovão: tá passando, vai passar.

O grande crítico Davi Arrigucci Jr., em seus ensaios sobre o Rubem Braga, aponta que a grandeza dos textos do nosso maior cronista está justamente na habilidade de capturar o relâmpago e a trovoada: ele joga um holofote no instante, mostrando-nos, como um monge budista, mestre do mindfulness, a imensidão num almoço de domingo, mas sabendo que esse instante é fugidio, que não dá pra agarrá-lo e guardá-lo numa redoma. É tipo: olha a vida ali! Cadê?! Já foi.

Se ficasse só no holofote, Braga cairia no discurso vazio do "carpe diem" de autoajuda. Se iluminasse só o que já foi, escorregaria pro melodrama fácil da nostalgia, esse Photoshop que tira as cicatrizes, celulites e estrias do passado. Unindo raio e trovão, as crônicas mais bonitas do Rubem Braga são também as mais tristes.

Fomos subindo a Angélica, eu tomando cuidado para não apertar demais aquelas mãozinhas, para não chamar a atenção para o ato e correr o risco de perdê-las. Nem vinte metros depois, o Dani sugeriu que fôssemos a uma barraca de açaí. A Oli queria o pão na chapa da padaria. Eles começaram a discutir. Lembrei que tinha esquecido de mandar meu PIS/Pasep para receber por um trabalho no SESC. Um carro ultrapassou no sinal vermelho. Soltei as mãos deles, apontei a faixa e gritei um palavrão.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.