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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Aproveita que passa rápido

O que a gente faz se, com a idade, cada vez mais os clichês vão fazendo sentido?

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Devemos fugir dos clichês como o diabo da cruz —e só aí já fui pego por dois. Que que a gente faz se, com a idade, cada vez mais os clichês vão fazendo sentido?

Quando eu era um pós-adolescente esquerda Nutella no centro acadêmico de ciências sociais da PUC, repetia platitudes como "o sistema é corrompido", "o neoliberalismo coloniza as nossas almas" e "a elite quer que o povo viva na ignorância". Aí li mais um pouco, percebi que eram frases feitas, de efeito, que o mundo era mais complexo. Li mais um tanto, vivi, trabalhei e me dei conta que de fato "o sistema é corrompido", "o neoliberalismo coloniza as nossas almas" mesmo e "a elite quer" –e trabalha para– "que o povo viva na ignorância".

Gostaria de ter frases mais sutis e originais para me exibir aqui, mas a realidade não colabora. Lojas Americanas, Brumadinho e Mariana. Crianças pedindo esmola nas ruas enquanto os lobbies das áreas mais poderosas abocanham nacos bilionários da reforma tributária. E, sem querer jamais comparar minha situação com a de tantos outros zumbis muito mais dominados pelo neoliberalismo, estou escrevendo essa crônica no assento 17 E (meio) de uma ponte-aérea, indo para uma reunião no Rio depois de nove horas de trabalho em três projetos diferentes em SP. O que aconteceu com aquele adolescente cabeludo que tinha uma bandeira da Jamaica na parede? Belo clichê, aliás, do qual não me envergonho —nem do cabelo comprido, nem dos brincos de argola ou das botinhas London Fog.

Poucos lugares-comuns, descobri, são mais verdadeiros do que os ditos por pais experientes aos de primeira viagem. "Aproveita que passa rápido." "Num piscar de olhos eles tão adolescentes e não querem mais saber de vocês." "Eu sei que tá difícil agora, mas você vai lembrar com muita saudade dessas noites maldormidas."

De fato, com nostalgia me recordo das trocas de fraldas que deveriam ser proibidas como arma química pela Convenção de Genebra em locais inóspitos para a prática da higiene infantil, tais quais vagões de metrô, bancadas de cartórios, mesas do Graal etc e tal.

Quarta-feira agora ficamos eu e a Julia, mãe dos meus filhos, trocando fotos das crianças no meio da tarde. Produção desses albinhos que o celular monta pra gente (belíssimos clichês algorítmicos), com imagens dos rebentos ao longo da vida, temperadas por uma musiquinha de propaganda de margarina, provavelmente gerada por IA sob a instrução "fazer pais de pré-adolescentes chorarem ao se lembrar da infância daqueles que logo os irão abandonar".

Há os clichês, porém, que me tiram do sério, tanto à direita quanto à esquerda. Enquanto uns querem "endereçar" um assunto "embedado" num "hub" para que "todo mundo fique na mesma página", outros não param de falar que "não é sobre isso", "é sobre corpos atravessados por afetos" na "potência" "decolonial".

Deve ser mais ou menos como meus filhos se sentem quando eu falo "não esquece de beber água", "leva um casaco", "come devagar, mastiga", "vamos sair do Minecraft?", "Por que você não brinca lá fora?".

Desculpa, Olivia, desculpa, Dani. Não é sobre chatice, é sobre amor. É impossível pra mim não endereçar esses assuntos. Meu corpo é atravessado por um hub de afetos potentes há muito embedados em mim. Hoje o Dani faz nove anos e só consigo pensar numa coisa: como passa rápido.

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