Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Slime na airfryer

Quando a briga das crianças extrapola o Código Civil e o Penal e adentra a complexa seara da filosofia do direito

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Tem umas horas da paternidade em que não adianta recorrer a uma pediatra ou a um psicopedagogo, é inútil ler "Crianças francesas não fazem manha" ou toda a bibliografia da clínica Tavistock: você precisa é de um bom advogado.

Calma. Meu intuito não é processar o mais novo, cujo talento para os esportes o fez arremessar meu celular, feito um disco olímpico, no meio do lago do Ibirapuera. Tampouco busco indenização da filha que, inclinada à ciência, resolveu testar o método empírico cozinhando meio quilo de slime na airfryer. Embora ambos merecessem um processo, o jurista é (por enquanto) só para me auxiliar nas brigas dos dois.

Eis o caso. Meu filho de oito pega o iPad e começa a trabalhar em seu castelo subaquático, no Minecraft. Minha filha de dez surge na sala e diz "eu também quero o iPad!". Meu filho argumenta que ela usou o iPad a noite passada inteira. Hoje é a vez dele. Parece sensato. A promotoria, no entanto, apresenta seu caso de forma mais específica: "eu usei a noite inteira porque ele não me pediu pra usar. Se ele tivesse pedido, eu teria proposto meia hora cada um". Segundo o argumento, que me parece lógico, como hoje ela está pedindo, ele deve aceitar meia hora cada um.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 22 de Julho de 2023, mostra a pintura de dois cubos de madeira com pregos presos aleatoriamente em suas faces.
Adams Carvalho

Quem tem razão? Se pensarmos do ponto de vista do usufruto do iPad, meu filho está certo. Para mantermos a isonomia, i. e., a mesma lei para todos, soa correto uma noite inteira para ela, ontem, agora uma noite toda para ele. Se pensarmos, porém, do ponto de vista dos desejos, a coisa muda de tom. Ontem só ela queria usar o iPad e ele estava satisfeito assistindo a Lego Ninja Go na TV. Hoje os dois querem usar o iPad. Ou seja: ontem ninguém se frustrou. Hoje eu a frustrarei, caso não façamos o rodízio.

A abstração que ela me propõe é bem complexa. Me diz: ele tinha o direito de usar o iPad ontem e não usufruiu. Eu tenho o direito de usar o iPad hoje e quero usufruir. Meu filho argumenta que não sabia que, se quisesse usar o iPad a cada meia hora, ontem, ele tinha o direito. Ela rebate: não sabia porque não pediu pra usar.

Sem dúvida, são questões que extrapolam –ou, deveríamos dizer, infrapolam?– o Código Civil e o Penal, adentrando a complexa seara da filosofia do direito. Sentindo-me um ignorante completo, penso em me sair com uma atitude bem anos 80: "ninguém vai usar o iPad nem ver TV! Chega! Acabou! Vão brincar de massinha! E longe da airfryer!".

Percebo, no entanto, que essa truculência é totalmente fora de propósito, de razão e de época. Nada mais errado na educação do que regras sem sentido. Preciso ganhar tempo. Escapulo pro banheiro. Tranco a porta. Ligo pro meu amigo Beto, advogado.

Beto é das pessoas mais brilhantes que eu conheço. Já lidou com assassinos, corruptos, falências, fusões, aquisições e –pior– divórcios. Sussurro no telefone: "Beto, tá podendo falar?". "Manda!". Do lado de fora, meus filhos batem na porta: "eu quero o iPad!". "Mas é o meu dia!". Explico a situação. Ele reflete por um momento. "Do ponto de vista legal, se ela teve o iPad por uma noite, ele deve ter o iPad por uma noite. Só a partir de amanhã é que se deve começar o rodízio de meia hora cada um".

Saio do banheiro seguro e dou o veredito. Os dois aceitam. Sinto-me um pai bom, justo, contemporâneo. Minha filha se senta na poltrona, diante da TV. Meu filho encrenca: "eu quero sentar na poltrona!". Minha filha retruca: "ele ficou a noite passada inteira na poltrona!". Confisco o iPad, desligo a TV. Mando-os brincar de massinha. E quem não estiver contente que ligue pro Beto e me processe.

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