Siga a folha

É professor do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP. Também é autor de 'Bel, a Experimentadora'

Descrição de chapéu Corpo

Bolsonaro acabou com a mamata dos cientistas

Como cientista, rendo-me aos fatos; em sua obcecada contenda contra a ciência, Bolsonaro venceu de lavada

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Em resposta a um dos meus artigos críticos à atuação (?) do governo federal na pandemia, um leitor vaticinou: "CIENTISTAS ODEIAM BOLSONARO PORQUE ELE ACABOU COM A MAMATA DE VOCÊS!"

Assim, em letras garrafais, como se cuspisse aos berros na face do interlocutor opositor, o correligionário jactava-se do cumprimento de uma meta do seu capitão. Reconheço, colérico comentarista: a "mamata" (aspas imperiosas) dos cientistas chegou ao fim. E não foi de repente.

Ao longo de 27 anos de sua carreira parlamentar, o único contato de Bolsonaro com a ciência —mais uma colisão do que um contato— foi a fervorosa defesa da fosfoetanolamina, a famigerada "pílula do câncer", que por não curar câncer, nos envergonhou diante do mundo quando aprovada por um legislativo negacionista, à revelia da Anvisa e, sobretudo, da ciência.

Pesquisa para mapeamento genético de câncer infantil - Eduardo Knapp - 14.fev.22/Folhapress

Ironicamente, a pandemia faria a história se repetir como farsa ou tragédia —parafraseando um célebre inimigo imaginário do capitão— , com cloroquina, ivermectina, ozonioterapia, jacarés e afins. Da farsa bolsonarista fez-se a tragédia dos brasileiros, em especial de minorias étnicas e raciais, tese que poderá ser admitida, em breve, pelo Tribunal Permanente dos Povos.

Voltemos à linha histórica. Em 2018, um Bolsonaro com chapéu de político outsider triscou em assuntos de ciência, tecnologia e inovação em seu plano de governo: um rascunhado de uns 80 slides impressos em pdf; dois deles dedicados ao tema.

Neste, o presidenciável afirmara que o modelo de pesquisa e desenvolvimento no Brasil estava totalmente esgotado, visto que dependia de recursos governamentais. Que a universidade brasileira necessitava estar alinhada aos interesses das empresas, tendo como objetivo a "formação de futuros empresários". Que a pasta do Meio Ambiente deveria ser realocada sob uma "nova estrutura federal agropecuária". E que a nova meta seria tornar o país um "centro mundial de pesquisa e desenvolvimento em grafeno", matéria-prima para construção de submarino nuclear.

Três ano e meio se passaram. Críticos dirão que o Bolsonaro falhou em nos tornar uma nação líder na ciência do grafeno— ou noutra área qualquer. Mas não podemos negar que o presidente logrou entregar a sua claque muito mais do que se presumia.

Institutos de ciência e tecnologia e universidades públicas de reputação internacional foram sistematicamente desmantelados. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) sofreu grave desmonte, ao que parece, por cumprir bem uma de suas missões precípuas: evidenciar, com dados, o desmatamento da Amazônia. Contra os fatos, Bolsonaro ofereceria a saliva.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) chegou a ser entregue a um criacionista. Algo tão natural como elevar ao papado o visionário astrofísico Stephen Hawking (1924-2018). Universidades federais foram acusadas por Weintraub, ex-Educação (!), de manter "plantações extensivas de maconha, a ponte de precisar de um borrifador de agrotóxico. ImpreCionante...

E a barbárie não se restringiu às instituições. Em vida e in memoriam, cientistas brasileiros de diversas áreas do saber vêm sendo acossados por Bolsonaro e sua súcia. A vasta lista conta, entre outros, com Ricardo Galvão, Marcus Lacerda, Lucas Ferrante, Pedro Hallal, Adele Schwartz Benzaken, Conrado Hübner, Paulo Freire. Em artigo publicado na Science, o ótimo Herton Escobar denunciou este "ambiente hostil" onde se aventuram nossos cientistas. "Uma aventura não recomendada"​, advertiria um miliciano. Não era assim que a academia brasileira se imaginaria destacada num dos periódicos mais prestigiosos do mundo.

Como cientista, resta-me render-me aos fatos. Em sua obcecada contenda contra a ciência, Bolsonaro venceu de lavada. Foi-se a mamata de programas como o Ciência sem Fronteiras, que, ainda que imperfeito, permitiu o intenso intercâmbio de alunos e cientistas, favorecendo inéditas e produtivas cooperações internacionais. Sob Jair, Sem Ciência de Fronteira foi o plano que prosperou.

Adeus à mamata das bolsas de pós-graduação. Mais de 15% já foram rapinadas na gestão do mito. E quem quiser ser pago pelo Estado para fazer ciência que escolha o seu país comunista preferido (Estados Unidos, Alemanha e Canadá estão entre os "comunas" que mais acolhem, muito satisfeitos aliás, nossos cérebros em fuga).

Au revoir, verba da universidade pública. O facão patriótico acaba de sangrar em mais 14,5% o já hemorrágico orçamento das federais. Quem se importa? Que fechem uma a uma quando o lixo acumulado as tiver asfixiado. E assim jaz a ciência brasileira, vítima de asfixia, ao gosto do capitão.

Cumpre-nos ainda reconhecer que o fim da mamata não é o cruciante destino de nossa singela categoria apenas. Entre os alquebrados também estão jornalistas, ambientalistas, povos indígenas e indigenistas, antirracistas, artistas, trabalhadores precários, e outros tantos que padecem do bolsonarismo acima de tudo e de joelho no pescoço de todos.

Na odienta pátria amada que nos tornamos, conhecimento, liberdade, meio ambiente, terra, cultura, ação afirmativa e comida no prato incluem-se todos na categoria das mamatas. Orçamento secreto, gabinete do ódio, motociata, arma, viagra e voto em papel restam como necessidades cívicas vitais. É a escola do mundo ao avesso, nas palavras do intelectual uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) –outro que nem postumamente escapou à patrulha moral bolsonarista.

Antes das atrocidades e tudo o mais, é o mero exercício da lógica —mola mestra do nosso ofício— que nos repele os cientistas e o capitão. Se não, vejamos:

Bolsonaro é um negacionista que tomou os cientistas como inimigos.

Somos cientistas.

Logo, Bolsonaro e os cientistas somos inimigos.

Em outubro, seremos agraciados com uma nova chance de repudiar o obscurantismo, a incivilidade, a boçalidade, o retrocesso. Ah, os sopros de esperança da democracia. Se pudesse, Bolsonaro aboliria essa mamata também.

*Essa coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas refletem sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas