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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Mais teses sobre banheiros, por favor

Praticantes da ideologia de gênero querem novas meninas no banheiro dos meninos

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Na segunda retrasada (21), neste espaço, o amigo Pondé se queixou de que há teses universitárias demais sobre banheiros públicos: "Nunca imaginei que (banheiros) seriam um dia objeto de PhD em ciências humanas".

Dei uma olhada na lista das teses do Centre National de la Recherche Scientifique e não achei teses em curso sobre banheiros. Claro, isso só vale para a França.

Pondé quis fazer uma piada e conseguiu: os intelectuais complicam além da conta sobre temas que não mereceriam pensamentos sofisticados. Não é?

Deve ser possível escrever uma história da segregação urinária e defecatória no Ocidente, ou seja, reconstruir os caminhos pelos quais o costume separou meninos e meninas na hora de ir ao banheiro. Que mais?

Hoje os transgêneros pedem para usar o banheiro do sexo que eles escolheram na sua transição: nasci menino e me tornei menina, quero frequentar o banheiro das meninas.

Do ponto de vista do pudor público, essa seria a solução mais simples, mas...

Lembrete: os praticantes da ideologia de gênero são os que professam ideias sobre gênero que dependem não dos fatos, mas de suas convicções —religiosas, na maioria dos casos.

Voltando: ...mas os praticantes da ideologia de gênero dizem que só há dois gêneros e querem que as novas meninas frequentem banheiros masculinos. A questão é tratada como um pormenor (os transgêneros são poucos), afinal, você quis mudar de sexo? Faça xixi em casa, então.

Mesmo transgêneros à parte, eu tenho a impressão oposta à de Pondé: para mim, não há teses universitárias suficientes sobre banheiros públicos.

Eu mesmo, por exemplo, fiz uma pesquisa (inédita, aliás) constatando que a maioria dos homens, quando acham que não estão sendo vistos, não lava as mãos depois de fazer xixi ou cocô.

Fora isso, por eu ser psicanalista e psicoterapeuta, sempre entendo a realidade a partir de suas margens.

Se você quer entender o que foi a União Soviética, o que é melhor? Você se juntar a Stakhanov, o operário exemplar, e, na terceira vodca de fim de dia, contar piadas sobre dissidentes que falam besteiras e deveriam ficar em casa se eles não gostam? Ou então passear pelos campos do gulag, onde eram silenciados os dissidentes?

A questão é cognitiva: você não vai entender o que era a União Soviética se não começar pelo gulag. Da mesma forma, você só vai entender o que é um banheiro público se começar por todos os que não acham que é "apenas" um lugar para aliviar bexiga e intestino.

Para oferecer mesmo um vislumbre dos desejos, das fantasias e das práticas que se desdobram nos banheiros públicos, eu precisaria proibir esta coluna aos menores de 18 anos. Mesmo assim, vou tentar, sem ofender a reserva do leitor.

Você achava que os banheiros masculinos podiam ser lugares de encontro para homossexuais masculinos promíscuos —e só? Lamento: longe disso.

Conheci uma mulher que só encontrava prazer sendo amarrada entre dois urinais num banheiro público. Conheci um homem que se ajoelhava nu nas cabines de banheiro para limpar as gotas de urina deixadas pelos predecessores; ele esperava que um vizinho de cabine olhasse por baixo da divisória e o surpreendesse.

E o que dizer das mensagens deixadas na parede ou no próprio papel higiênico, algumas prometendo um encontro rápido a quem as encontrar?

Um banheiro público unissex já funciona em São Paulo, num drive-in frequentado por pais de família na saída do trabalho e pelas travestis e transexuais prostitutas que eles contratam na porta do local. Seria um bom lugar para pesquisa de campo.

Para entender a realidade e, eventualmente, para fazer política, seria sempre apreciável esquecer das grandes ideias e da miséria do senso comum e partir dos fatos, para praticar, como sugeriu um leitor, José Borges, uma política das evidências.

Semanas atrás, no meu consultório, eu olhava para as torres da Paulista e pensava em dois adolescentes que discordam de seu corpo e sonham reencontrar a si mesmos num gênero diferente do que lhes foi atribuído quando nasceram —eu mais apavorado do que eles pela perspectiva de sua longa luta contra a estupidez do mundo. Foi quando recebi o vídeo da ministra Damares, toda contente, cantando sobre meninos de azul e meninas de rosa. A violência nua, sádica, sem escrúpulos, daquelas imagens me deixou simplesmente enjoado.

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