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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Patriotismo e patriotice

Grupos nos autorizam a sermos os canalhas que nós não nos autorizaríamos a ser

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Concordo com o presidente Bolsonaro (em suas postagens no Twitter, veja na Folha), há algo de errado acontecendo na educação: “Em 2003, o MEC gastava cerca de R$ 30 bilhões em educação e, em 2016, gastando quatro vezes mais, ocupa as últimas posições no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa)”.

O presidente já disse que os ensinos fundamental e médio deveriam seguir o exemplo dos colégios militares, que conseguem resultados melhores. De novo, concordo: sou a favor de tempo integral, uniforme, disciplina.

O problema é o seguinte, de acordo com uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo de 28/8/2018: “São R$ 19 mil por estudante, por ano, gastos pelo Exército nas 13 escolas existentes — que têm piscinas, laboratórios de robótica e professores com salários que passam dos R$ 10 mil […]. O setor público investe, em média, R$ 6.000 por estudante do ensino básico anualmente”.

Para transformar as escolas públicas em militares, seria preciso triplicar o orçamento do Ministério da Educação.

Isso sem mencionar este “detalhe”: os alunos dos colégios militares são filhos e filhas de militares ou concursados numa seleção severa.

Nos posts desta segunda (4), o presidente também anunciou que há “indícios muito fortes de que a máquina [estatal] está sendo usada para manutenção de algo que não interessa ao Brasil”.

Como se manifesta esse complô educacional, ainda de acordo com o presidente? “A agenda globalista mira a divisão de classes. Pessoas divididas e sem valores são facilmente manipuladas”.

É preciso, portanto, “mudar as diretrizes”, para formarmos cidadãos, em vez de militantes políticos.

Aparentemente, como primeiro passo contra a “agenda globalista” e na direção de uma nova escola em que os alunos estudarão de verdade, o presidente mandou seu ministro da Educação pedir que as escolas gravem vídeos de alunos cantando o hino nacional —e os mandem para o governo. No fim, aliás, os alunos escutariam também uma mensagem com o slogan de campanha de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”. 

A proposta me faz pensar nas crianças que acreditam que, se elas torcerem muito forte, seu time jogará melhor. 

Aqui, não tenho mais como concordar com o presidente. 

Primeiro, porque essa de mandar vídeo para o governo é coisa de polícia política de país comunista.

Segundo, porque sou a favor da “agenda globalista”, que talvez seja a maior contribuição do cristianismo à história da cultura ocidental. De São Paulo (o santo, não a cidade) para cá, a novidade do cristianismo é que existiria um deus só, e ele seria o mesmo para todos. Por consequência, todos os humanos se tornam nossos semelhantes.

Sobre isso, quem não quiser ler Alain Badiou (“São Paulo, a Fundação do Universalismo”, ed. Boitempo), que é de esquerda, leia o último Bart Ehrman (“The Triumph of Christianity”, Simon & Schuster).

Terceiro, “pessoas divididas e sem valores” não são mais manipuladas do que pessoas unidas ao redor de supostos valores. Ao contrário. As manipulações, para acontecer,  pedem dois ingredientes: um grupo, ao qual todos pertencem ou querem pertencer, mais o encontro com um psicopata. Sem o grupo, o psicopata 
pode pouco.

Funciona assim: você não gosta do estrangeiro que tem uma loja parecida com a sua, na esquina, só que melhor e mais barata. Mas você não consegue desejar que ele morra de câncer, porque você, afinal, tem freios morais e se envergonharia desse pensamento.

A solução se dá em dois tempos. Primeiro, você transforma seu patriotismo normal em patriotice —por exemplo, cantando o hino nacional todos os dias. Segundo, você encontra um psicopata que proclama amor à pátria e grita “morte aos estrangeiros”. Pronto, você agora pode colocar fogo na loja de seu vizinho: é autorizado pelo amor à pátria, não é?

São os grupos que nos autorizam a sermos os canalhas que, sozinhos, nós não nos autorizaríamos ser. A pátria é um desses grupos possíveis.

Resta a questão do slogan de campanha. Como slogan, tudo bem, vale (quase) tudo. Mas como objeto de ensino? Sério?

“Brasil acima de tudo”. Infelizmente, é difícil distinguir país e governos. Por exemplo, em “Brasil, ame-o ou deixe-o”, “ame-o” se refere à ditadura, “deixe-o” se refere ao país. Além disso, a pátria é mais bem servida sem bazófia, por quem tem uma clara ideia de seus limites e seus erros.

Agora, “Deus acima de todos” nas escolas públicas? Vamos dizer “Deus acima de todos que nele acreditam”, ok? Para todos os outros, não vale.
 

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