Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Escola com estudo

Vamos deixar a brincadeira para o recreio e simplesmente estudar?

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Vittorio Alfieri (1749-1803) é o maior autor de tragédias da literatura italiana (a safra de autores italianos de tragédias é bem mediana).

Suas peças, no secundário, eram leitura obrigatória, mas eram chatas. Em compensação, a gente se interessava pela vida de Alfieri.

Ele gostava de farra. De amada em amada e de viagem em viagem, escrevinhou “Antonio e Cleopatra”, que fez sucesso, e a partir de então, decidiu se levar a sério.

Para vencer seu espírito impulsivo e inquieto, ele inventou um remédio contra o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, TDAH (que acomete de 5% a 7% das crianças de hoje): ele pedia para ser amarrado na cadeira onde sentava para escrever. O mordomo, que o amarrava, só podia soltá-lo à noite.

O remédio funcionava pela determinação de Alfieri. Sem isso, mesmo amarrado, ele brincaria com sua caneta e sonharia com aventuras e amores, sem escrever nada.

Ilustração de Mariza Dias Costa para Contardo Caligaris de 28 de fevereiro de 2019.
Mariza Dias Costa

Supõe-se que o TDAH resulte de um desenvolvimento lento do córtex pré-frontal —a área do cérebro que nos torna mais prudentes. O transtorno é recorrente numa mesma constelação familiar, mas isso não prova que seja herdado: falta de foco e agitação também se transmitem pelo exemplo dos próximos.

Agora é comum pensar (ou suspeitar) que o TDAH e seu diagnóstico tenham se tornado mais frequentes nas últimas décadas.

Muitos pensam que as crianças de hoje sofrem mais de TDAH porque são expostas a mais estímulos do que no passado. Concordo, mas elas são também privadas de uma boa parte de suas obrigações: portanto, só lhes resta se divertir, o que é eminentemente ansiógeno.

Como me divertirei? O que me divertirá? E se —Deus não permita— eu me entediasse?

Comparado com essas perguntas, a lista dos deveres de casa é pacífica: basta ler a agenda, está lá o que tenho para fazer, e vai me ocupar até o jantar.

O que angustia não é tanto a obrigação de sentar e estudar, mas a de “se divertir”.

Minha coluna de 14/2, tratava dos efeitos (ruins, mundo afora) da diminuição das exigências escolares a partir dos anos 1960.

Uma amiga, Nathalia Botura, doutora em pedagogia, comentou que, no Brasil, a coisa começou com a Escola Nova dos anos 1930: “Vamos acabar com a palmatória e conferir ‘humanidade’ aos pirralhos”.

Deu lugar à Escola Ativa, que, escreve Nathalia, “glorificava ‘o impulso espiritual’ da criança que criaria naturalmente as condições para seu desenvolvimento e autonomia”.

Pergunta: “Como a criança vai construir seu próprio saber, sem os ‘insumos’ intelectuais para tanto? Até mesmo a função psicológica da ‘criatividade’ é aprendida, é um músculo a ser exercitado”.

Consequências catastróficas para o ensino: acabou a “responsabilidade do estudo —não apenas por parte dos alunos, mas por parte dos professores que não são treinados para estudar”.

Enfim, Nathalia cita uma nota nos “Cadernos do Cárcere” de Gramsci (muito citado ultimamente por quem não o lê):

“A criança que quebra a cabeça com os barbara e baralipton [para quem se divertiu e não estudou: são formas de silogismos na lógica de Aristóteles, que qualquer estudante na minha época decorava] certamente se cansa, e deve-se fazer com que ela só se canse o indispensável e não mais; mas é igualmente certo que será sempre necessário que ela se canse a fim de aprender a se autoimpor privações e limitações de movimento físico, isto é, a se submeter a um tirocínio psicofísico. Deve-se convencer muita gente de que o estudo é também um trabalho, e muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não só intelectual, mas também muscular-nervoso: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento. A participação das massas mais amplas na escola média traz consigo a tendência a afrouxar a disciplina do estudo, a provocar ‘facilidades’”.

Em suma, Gramsci com Alfieri, com Nathalia e comigo: vamos deixar a brincadeira para o recreio e simplesmente estudar? Vamos parar de nos preocuparmos com escolas com ou sem partido, para fazer uma escola com estudo?

Mas essas são questões já ultrapassadas. Tudo vai mudar na educação brasileira, agora que o ministro da Educação decidiu que as crianças vão cantar o hino nacional. Volto sobre esse incrível e hilário achado pedagógico na semana que vem.

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