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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Ideia de que moral depende da fé prospera em países menos desenvolvidos

A modernização, no Brasil, é sempre apenas uma mão apressada de tinta, sem nem sequer massa corrida

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Já sabia que estávamos quase capitaneando a competição das infecções e das mortes pela pandemia de Covid-19.

Aprendi que estamos também quase capitaneando a competição dos países mais imorais do mundo.

O Pew Research Center acaba de publicar uma pesquisa em que indivíduos de 34 países, geográfica e culturalmente diversos, responderam à pergunta: “É preciso ser religioso para ter moralidade?”.

A pesquisa, apresentada na revista Piauí, está na íntegra no site do Pew.

A pergunta dirigida aos entrevistados não mede a religiosidade (nesse caso, seria “quão importante é Deus na sua vida?”), mas o caráter exclusivista e missionário da fé. Se você acha que não há moralidade fora da religião (a sua, claro), acredita que não há pessoas de bem fora de sua fé e que converter os “infiéis” é seu dever.

Defino a boçalidade como a caraterística de quem quer ou precisa impor aos outros a sua maneira de se reprimir. O boçal reprime nos outros o que não consegue reprimir nele mesmo.

Com isso, o Pew nos apresenta a primeira grande pesquisa sobre a boçalidade no mundo.

E descobrimos que a ideia de que só há moralidade graças à religião prospera nos lugares de menor desenvolvimento econômico e cultural —entendendo por “desenvolvimento” cultural a proximidade com as ideias da modernidade ocidental.

Os países mais convencidos de que não há moral sem religião são a Indonésia e as Filipinas (um terrificante 96%). Os menos convencidos são a Suécia (9%) e outros europeus —Espanha e Itália, berços do catolicismo, ficam em 23% e 30%; a França, grande pátria da modernidade, está com só 15% de pensamento boçal. Os Estados Unidos ficam divididos: 54% respondem que é possível sermos morais sem religião, e 44% pensam o contrário.

Uma observação: no fundo, a pesquisa quer saber se, para o entrevistado, a regra moral está nele ou fora dele —no caso, numa palavra ou numa tradição que, de repente, seriam “sagradas”. A pergunta da pesquisa poderia ser realizada sem referência religiosa: você acha que é possível ser moral sem obedecer aos preceitos do livro vermelho de Mao?

A modernidade recusa a ideia de que os valores morais estão fora da gente —numa escrita sagrada ou nas palavras do camarada Stálin, do pastor, do padre, do papa ou do PCC, tanto faz. A modernidade é contra a elevação dos braços para convidar o rebanho a adorar, e pouco importa que a gente levante uma hóstia, uma Bíblia ou uma caixa de cloroquina —para a modernidade, o gesto de levantar os braços pedindo adoração é imoral em si.

Para a modernidade, a fonte da moralidade está na gente. Ela não se mede na conformidade a mandamentos externos. Ela é uma responsabilidade de foro íntimo.

Ao longo dos últimos 250 anos, tentamos nos acostumar com essa responsabilidade —ou seja, nos acostumar com a liberdade moderna. Não é fácil. Mas uma coisa é certa: assumir essa responsabilidade é o fundamento do que é moral para nós. Inversamente, procurar o certo e o errado na conformidade com prescrições (divinas ou terrenas, tanto faz), isso é sempre o mais imoral dos atos.

Então, qual é o lugar do Brasil “moderno” na pesquisa? Já sabíamos: a modernização, no Brasil, é sempre apenas uma mão apressada de tinta, sem nem sequer massa corrida. O Brasil está com a África do Sul, com 84% que pensam que a religião é a condição da moralidade, logo atrás da Nigéria e do Quênia, a léguas da modernidade. Estamos, em suma, do ponto de vista da modernidade, entre os países mais imorais do mundo.

Em 1939, Jean Rohmer publicava “La Finalité Morale chez les Théologiens, de Saint Augustin a Duns Scott” (a finalidade moral nos teólogos, de santo Agostinho a Duns Scott). Ele queria entender de onde tinha surgido, no século 18, a ideia moderna de que a falha moral não é a mesma coisa que o pecado, ou seja, que a religião não é o fundamento necessário da moralidade.

Rohmer mostra magistralmente que a própria ideia de um fundamento possível da moral na subjetividade humana, sem referência a Deus, atravessa toda a filosofia medieval.

De fato, a moralidade moderna deve muito a San Bonaventura e a Duns Scott, por exemplo. O cristianismo é assim: pode ser boçal ou então ter uma tremenda carga de liberdade. Lembrando: Adão e Eva preferiram se tornar mortais a deixar a Deus a responsabilidade de saber o que é o bem e o que é o mal.

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