Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Comício de Bolsonaro em Copacabana ofereceu registro público de fenômenos patéticos

Humor encontra dificuldades quando circunstâncias sociais deprimem a inteligência perceptiva

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O comício do Bozo em Copacabana ofereceu ao menos um episódio marcante para o registro público dos fenômenos patéticos. Sem mais nem menos, em meio à babel de bravatas, um deputado federal passou a falar em inglês. Pretendia estar sendo ouvido por Elon Musk, entronizado no ato como o bilionário que resgatará a liberdade no planeta. Uma escuta improvável: em órbita incerta, ele agora assedia australianos. Mas o episódio pode contribuir para reflexões de humoristas sobre as adversidades de se fazer humor hoje no país.

É que o riso é sempre riso de um grupo num contexto psicossocial, sensível a um descompasso entre linguagem e realidade, um desencontro de códigos. No ensaio sobre o chiste e suas relações com o inconsciente, Freud conta o episódio do casamenteiro profissional a quem pedem para arranjar uma noiva.
Ela é então apresentada, mas o cliente reclama em voz baixa que não esperava uma mulher manca, careca e feia. Ao que o outro retruca: "Pode falar mais alto, ela é surda". O efeito cômico decorre de dois códigos de linguagem que não se encontram, passam mecanicamente um pelo outro.

O ex-presidente Jair Bolsonaro durante manifestação com apoiadores na praia de Copacabana - Pilar Olivares/Reuters

Nesse automatismo, Henri Bergson enxerga o ponto de partida para a compreensão da comicidade (em "O Riso: ensaio sobre o significado do cômico"). Formas desajeitadas, desvios de padrão e de simetria, tanto em atuações como no discurso, são percebidos como mecanizações ou rigidez do fluxo vital capazes de suscitar o riso. Mas este não é um fenômeno redutível ao afeto, e sim à inteligência. O riso é um gesto social.

Censura à parte, o humor encontra dificuldades quando circunstâncias sociais deprimem a inteligência perceptiva. Ao que consta, não havia humor nazista. Hoje, na banalização protofascista que caracteriza a ultradireita, a linguagem não consegue tomar distância crítica da realidade. A extravasão bruta de emoções excede a inteligência necessária ao senso comum para ponderar situações. Dialogar é tão inútil como jogar água no mar. E fazer humor é tarefa adversa numa realidade já grotescamente risível em si mesma.

Os franceses sempre riram com o "con" (babaca). Georges Brassens cantava: "Ninguém destrona o rei dos cons". Descobriu-se agora que o "connard" (mau caráter, escroto) predomina no individualismo de massa.

A diferença entre um e outro é que cons são apenas bobos, enquanto connards são perversamente conscientes e, embora dentro das leis, fazem parede meia com a psicopatia ofensiva. Elon Musk é um connard. Entre nós, fazem multidão, com "excelentíssimo" no cartão de visita.

Desafio para nossos humoristas: como fazer rir de figuras públicas das quais não mais se sabe se são casos de uma patologia epidêmica do caráter ou babacas empoderados.

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