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Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

Os limites da onisciência

Narrador do livro 'Canção de Ninar', de Slimani, ecoa autoridade totalizante que  é a marca do nosso tempo

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Na representação literária, o chamado "narrador onisciente", que tudo sabe e tudo vê, tornou-se uma espécie de Judas estético da modernidade. O realismo do século 19 tinha como pressuposto um certo cientificismo iluminista —o narrador de Flaubert sabia tudo de Madame Bovary, assim como Tolstói dominava a vida de Anna Kariênina.

No século 20, este mundo de certezas começa a ser minado em favor de uma subjetividade ambígua, que assume os limites do olhar do indivíduo, justamente em nome de uma maior fidelidade ao real.

Mas o narrador onisciente jamais saiu de cena: é a cabeça do autor ao enfrentar seu tema e a tesoura que usa para escolher o ponto de vista. Pensei nisso ao ler "Canção de Ninar" (Tusquets Editores; trad. de Sandra Stroparo), sucesso internacional de  Leïla Slimani, jovem escritora franco-marroquina.

O romance conta a história de Louise, uma babá, branca, que, em Paris, mata as duas crianças de que cuidava —o que o leitor saberá na primeira página. A mãe das crianças é uma advogada (de ascendência árabe); o pai, um técnico de som —uma família estável de classe média que via em Louise a solução de todos os seus problemas práticos.

O narrador sabe e descreve tudo, de todas as cabeças, de uma forma soberana. Veja-se este detalhe sobre uma personagem: "É sorridente, mas invejosa". O detalhe pictórico ("sorridente") entra no mesmo nível do detalhe moral ("invejosa"). Assim como o leitor não discute com um dado objetivo, também não discutirá com o subjetivo; definiu-se o caráter da personagem para sempre.

Em outro momento, o casal em férias leva a babá para um restaurante, como um presente. O narrador sabe a intenção deles ("Louise ficaria contente") e sabe também o que se passa na cabeça da babá ("Ela está fascinada pela naturalidade de Paul"). Nada sobra para o leitor pressentir ou decidir.

Da metade para o fim, como não há mais nada a se revelar, a narrativa afoga-se nos lugares comuns sentimentais, em torno da "alma putrefata de Louise".

É a fabulação típica do conto de fadas: o narrador sabe tudo, e transmite ao ouvinte a sua lição sócio-moral, aqui ilustrada pela história exemplar de uma psicopata.

É, também, uma típica regressão literária contemporânea --mas quem se importa? A literatura dos nossos dias passa a absorver e a repetir, na estrutura mesma da linguagem, a autoridade totalizante que é a marca do nosso tempo.

Um contraponto notável pode ser lido em "Era Uma Vez Uma Mulher que Tentou Matar o Bebê da Vizinha" (ed. Companhia das Letras; tradução de Cecília Rosas), da russa Liudmila Petruchévskaia, de 80 anos.

É uma coletânea de contos —digamos "contos de fada"— que se revela uma explosão de alta literatura a partir do modelo das narrativas populares, mas com formas e percepções do mais urgente espírito contemporâneo.

Não se trata de uma "vanguarda de prancheta"; ressoa na literatura de Liudmila, uma escritora banida na União Soviética, o imenso arco de influências telúricas e intelectuais que fazem a cultura russa.

Encontram-se em cada página os ecos de um mundo rural arcaico lado a lado com máfias modernas, e o sabor da oralidade popular sob o fantasma transfigurado dos gulags e do horror stalinista; e, em tudo, ressoa a onipresente estrutura familiar, sempre implodida.

O que se sente, na esteira clássica dos contos de Anton Tchékhov (1860-1904), é que seus personagens são "indivíduos", este unicórnio em extinção na vida contemporânea. São figuras únicas, não reduções chapadas da autoridade narrativa.

Seu segredo está em assumir o "era uma vez", mas sem lições de moral; a onisciência edificante se ficcionaliza. Tudo nela é demolidor, sob uma sinceridade coloquial que desconcerta: "Era uma vez uma mulher que odiava sua vizinha de quarto", ou "Havia uma moça muito gorda que não cabia no táxi", ou "Meu pai e minha mãe decidiram ser mais espertos que todo mundo".

Em muitos momentos, encontramos trechos que lembram os epigramas de Dalton Trevisan: "O marido dela era piloto, e ela não gostava muito dele, mas eles viviam muito bem". O espantoso é como a autora consegue extrair o mais inesperado lirismo de situações grotescas, como no conto "Eu te amo".

É o velho e conhecido narrador onisciente —mas com a fina tesoura de recortes da boa literatura.

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