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Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa "Choque de Cultura".

Descrição de chapéu

O amigo que perdi pra igreja

Ele dizia que ia só pela música e que sairia assim que quisesse

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Durante os fins de tarde da sétima série, após horas me esforçando para tornar a vida dos professores a mais infeliz possível, eu costumava ir para a casa do meu melhor amigo, onde tocávamos violão, passávamos trotes telefônicos (muitas vezes para parentes) e comíamos misto quente. 

Tudo isso era importante, mas o mais importante era a parte do violão, quando aos berros desvendávamos as letras em inglês e as harmonias das músicas de que gostávamos.

O violão acabou servindo de porta de entrada para o meu amigo na banda da igreja, em que seu talento desenvolvido tocando “Hellraiser” era usado para outros fins.

Eu questionava sua crescente ausência nos nossos momentos musicais, mas ele dizia que ia à igreja só pela música, que ninguém ali era obrigado a nada além disso —e que sairia assim que quisesse.

As férias me fizeram seguir meu próprio caminho perigoso, o das bandas de metal adolescente. Formei um grupo composto por dois guitarristas (eu e um que nunca tinha a corda ré) e um baterista que virava o prato ao contrário para colocar pó de cimento em cima, buscando um efeito “Seasons in the Abyss”, mas que na prática só espalhava pó de cimento por todo o local de ensaio.

Passamos o verão inteiro cobertos de pó de cimento praticando exaustivamente a única música que tínhamos, que, quando finalmente tomou forma, percebemos que era uma merda e acabamos com a banda.

Nem chegamos a comunicar o outro guitarrista, que volta e meia ainda me encontrava e perguntava se eu tinha um ré, como se estivesse preso num eterno ensaio para o qual ele não tinha cordas suficientes.

Meu amigo, a essa altura já totalmente entregue à igreja e suas bandas com pratos sem pó de cimento e guitarras com ré, raramente era visto. 

Certa vez ainda passei de mobilete pela sua rua, o vi voltando da igreja e só. Bons tempos em que o trânsito era livre de documentação, capacete, maioridade e seta. Mas só anos depois ele me ligou, quando eu estava já na universidade. 

Eufórico, perguntei várias coisas ao mesmo tempo, mas ele só me convidou para um culto destinado a universitários. Aparentemente ele tinha uma cota de convidados universitários a cumprir. Eu disse que ia ver.

Quem diz “não” pode até mudar de ideia. Quem diz que “vai ver” quer desaparecer para sempre. 

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